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Entrega da embarcação solar e ligação à rede do parque de painéis solares da Culatra, ambos projetos financiados pelo Mar 2020, estão agendados para dia 19 de julho. Questões burocráticas podem, contudo, prejudicar o avanço da Comunidade de Energia Renovável.

Apesar dos constrangimentos da pandemia, o projeto Culatra 2030 está num ponto de viragem positivo, segundo André Pacheco, coordenador e investigador do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve (UAlg).

«Diria que o ponto de situação é ótimo. Estamos em 2022 com financiamentos assegurados para conseguirmos produzir um terço das necessidades energéticas médias do núcleo piscatório da Culatra e para sermos um piloto na criação de uma Comunidade de Energia Renovável», projeto que foi submetido na quinta-feira, 5 de maio, à Entidade Reguladora dos Sistemas Energéticos (ERSE). «Ou seja, oito anos antes daquilo que é o nosso prazo, estamos já preparados para dar esse passo».

Neste momento, quem visita a ilha, talvez repare nos painéis solares que cobrem o passadiço principal, junto à igreja. A capacidade instalada no núcleo é de 60 Kilowatts-pico (kWp) e falta pouco para ligar o botão. «Estamos num processo final de certificação pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). A obra está a ser concluída pela Rolear. Envolve também a entrega de um barco solar, construído pela empresa olhanense Sunconcept e um posto de carregamento no porto de abrigo», financiados pelo MAR 2020. «Tudo será inaugurado a 19 de julho», o dia da Ilha da Culatra.

André Pacheco. Foto: Nuno de Santos Loureiro.

Além disso, está assegurado o financiamento de mais 30 kWp através de um parque solar de 22 kWp, a instalar no Clube União Culatrense e na Escola Básica, no âmbito de uma candidatura ao programa Bairros Saudáveis, e os restantes 8 kWp, a instalar no Centro Social Nossa Senhora dos Navegantes, através do Orçamento Participativo da União de Freguesias de Faro. O objetivo, contudo, é chegar aos 350 kWp e retirar o gerador a Diesel da ilha.

«Tudo aquilo que está a ser feito, tem por base a infraestrutura pública» e só não existe um aumento de capacidade, diz André Pacheco, porque o processo de legalização das habitações do núcleo está demorado. Até aqui, «fizemos tudo o que foi possível para trabalhar em prol daquilo que é o potencial de geração».

Modelo de economia social

André Pacheco, da UAlg, explica que há todo um modelo de economia social subjacente à criação da Comunidade de Energia Renovável, que, do ponto de vista jurídico, terá associado uma entidade gestora do autoconsumo coletivo, por exemplo, uma cooperativa.
As associações que neste momento detêm os projetos de produção solar, a Associação de Moradores da Ilha da Culatra (AMIC), Clube União Culatrense e Associação Nossa Senhora dos Navegantes, «tornam-se membros na qualidade de entidades coletivas. E qualquer habitante da ilha pode ser um membro e investidor», acrescenta.

Ou seja, «vamos criar um mercado descentralizado de energia, em que um habitante é cooperante e coloca painéis ou telhas solares em casa, se possível, com potência acima das suas necessidades de consumo individual, porque está inserido numa coletividade em que o excedente vai beneficiar outras famílias. Quem tiver mais capacidade financeira, mais contribuirá para alavancar o combate à pobreza energética».

Foto: Nuno de Santos Loureiro.

A legislação, através do pacote Clean energy for all Europeans já foi transposta para a legislação nacional.

«O que não existe é um projeto-piloto para as regras de partilha. E é nisso que estamos a pedir à ERSE que nos apoie. Será até possível chegar ao ponto de a Culatra se tornar exportadora de energia», embora esse não seja o objetivo. «A Culatra, dificilmente, poderá tornar-se autónoma em termos energéticos, porque teria de aumentar muito a capacidade de baterias que também são nocivas para o ambiente. E queremos manter a ligação à rede devido a uma questão de segurança. Se houver excesso de produção, o objetivo é que este seja repartido o máximo possível pela ilha e ainda assim, se houver excedentes, que sejam usados em projetos de sustentabilidade» como a dessalinização de água do mar, nas arcas frigoríficas de refrigeração do pescado, e numa rede inteligente que permita o carregamento dos barcos eletrosolares de apoio à atividade viveirista. Sabemos que a venda do excedente é feita a três cêntimos por Killowatt/hora e a compra é feita a 18», compara.

AMIC não compreende os atrasos na legalização das casas

Ouvida pelo barlavento, Sílvia Padinha, presidente da AMIC, diz-se preocupada pelo «grande atraso» na atribuição dos títulos de utilização dominial que consubstanciam o direito à habitação na ilha, e também, a criação da Comunidade de Energia Renovável, que é um dos principais objetivos do projeto Culatra 2030.

Os primeiros títulos foram entregues em junho de 2019, no âmbito do Projeto de Intervenção e Requalificação (PIR) do Núcleo da Culatra, numa cerimónia que trouxe à ilha os então ministros João Pedro Matos Fernandes e Ana Paula Vitorino, das tutelas do Ambiente e do Mar, respetivamente.

«O processo está muito demorado e isso preocupa-nos pelo facto de podermos vir a perder uma oportunidade. A Culatra tem um estatuto que é único no país, é uma comunidade piscatória reconhecida» por uma portaria que possibilitou a este território requerer licenças de ocupação do domínio público marítimo, em outubro de 2018. «Desde então, o processo chegou a cerca de um quarto da conclusão», lamenta.

Segundo a dirigente associativa, falta que a Administração de Região Hidrográfica (ARH) do
Algarve/Agência Portuguesa do Ambiente (APA) «faça uma análise detalhada sobre cada caso. E que notifique as pessoas para podermos responder se houver alguma infração. Entre abril e maio de 2019 fizemos todos os pedidos de reconhecimento do edificado. Deste então, temos cerca de 100 títulos atribuídos, de um total de 360 casas. Os restantes 260 aguardam resposta», contabiliza.

Sílvia Padinha. Foto: Nuno de Santos Loureiro.

«A Culatra, enquanto comunidade, com o apoio da UAlg está a fazer um esforço no sentido de corresponder às linhas orientadoras da sustentabilidade e da transição energética. Temos um estatuto que nos permite fazer isto com confiança, mas as entidades têm duvidas», exorta Sílvia Padinha.

«Poderá haver casos de segunda habitação e nós queremos esclarecer tudo. Agora o que acontece é que temos uma centena de pescadores e pessoas de fracas posses que têm de pagar uma taxa e, ao mesmo tempo, temos mais de 200 casas num vazio e não pagam nada». Ou seja, quem tem a casa legalizada acaba por ser penalizado em relação às que estão em situação clandestina.

«Os projetos que temos em mãos ficam encalhados e não podem ser concretizados. Ao longo dos anos, defendemos a união da comunidade. Se isto se prolongar, é mau porque cria divisões. Tenho muita dificuldade em explicar e aceitar que desde que saiu a lei em 2018 para reconhecer a comunidade da Culatra, temos o processo a um quarto» da sua conclusão.

Para já, a gestão do PIR está nas mãos da APA e apesar de estar prevista a transferência dessa competência para a Câmara Municipal de Faro, tal ainda não aconteceu. «Ninguém tem a obrigatoriedade da gestão deste espaço público. A Praça Heróis do Mar, por exemplo, ainda não tem iluminação e a obra está concluída há três anos. Começam a aparecer já problemas de falta de manutenção para os quais ninguém assume responsabilidade», aponta.

«Nós vivemos cá e queremos viver com algum conforto e qualidade. E não só. Temos uma imagem turística a defender. Entristece-nos que as entidades competentes não olhem para nós dessa forma».

Acresce que por via do projeto Culatra 2030, «estamos a ser vistos por toda a Europa. Há pouco tempo fizemos apresentações na Madeira, Croácia, Suécia e recebemos aqui pessoas de todo o mundo, interessadas. Gostam do que preconizamos, que é a identidade da comunidade, a harmonia entre todos e a defesa do ambiente. Penso que o governo podia aproveitar este exemplo. Mas não sinto o apoio de quem aprovou o nosso estatuto», lamenta.

Padinha admite que no edificado «existem as mais diversas situações». O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) para o troço costeiro entre Vilamoura e Vila Real de Santo António foi aprovado em 2005. A Sociedade Polis Ria Formosa foi criada em 2008, «mas a vida continua na Culatra como em qualquer outro sítio, onde as pessoas foram melhorando as casas. Claro que aquilo que existe hoje é diferente daquilo que existia há anos. O que queremos é que perguntem às pessoas qual o motivo das alterações. Outros casos já foram alvo de vistoria, mas ainda há dúvidas. Não sabemos quais são para podermos responder».

André Pacheco conclui: «temos de respeitar as jurisdições da administração pública, tendo consciência que existe aqui uma agenda de transição energética assente em cinco pilares: energia, combate à pobreza energética, transporte marítimo, resíduos e água. Somos um consórcio que envolve academia, empresas, associações locais e comunidade. A partir do momento em que se atingir o objetivo de se criar uma Comunidade de Energia Renovável, a capacidade económica estará instalada» e se tiver sucesso, «poderá ser replicado em qualquer outra comunidade isolada».

APA admite que não há «prazo previsto para a conclusão»

Por sua vez, contactada pelo barlavento, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), esclarece que na sequência da publicação da portaria n.º 277-B/2018, de 15 de outubro, «foram efetuados procedimentos com vista a concretizar o que define o Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura – Vila Real de Santo António, publicado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2005, de 27 de junho (POOC) para o núcleo da Culatra, após a aprovação do respetivo Projeto de Intervenção e Requalificação (PIR)».

No PIR, elaborado pela Sociedade Polis Litoral Ria Formosa, foram identificadas 244 construções de primeira habitação (três das quais com uso misto, onde também funciona um estabelecimento comercial), 103 construções de segunda habitação, oito construções exclusivamente para comércio, 144 arrecadações (135 licenciadas como apoio de pesca e nove demolidas) e 13 construções para serviços e usos públicos diversos, ou seja um total de 512 construções.

De acordo com a referida portaria, diz a APA «apenas é possível regularizar as construções de primeira habitação, estabelecimentos e construções de apoio à comunidade».

Com base neste ponto, «foram vistoriadas 248 construções, tendo sido emitida licença por 30 anos a 88 construções. Houve também a emissão de 10 licenças provisórias por dois anos, para que os interessados procedam a melhoramentos na construção que garantam um mínimo de condições de salubridade. Nestes casos, assim que os interessados apresentem comprovativo da regularização será efetuada nova vistoria e emitida a licença por 30 anos. Foram ainda emitidas licenças a duas construções de serviços e usos públicos diversos», refere a entidade.

A solução «preconizada para o licenciamento das habitações do núcleo da Culatra naquela Portaria, encontrou alguns obstáculos na sua concretização, principalmente por terem ocorrido alterações nas construções, em termos de áreas e de requerente, após o levantamento das construções que serviu de base à elaboração do PIR».

Estas alterações, «detetadas em sede de vistoria às construções, foram efetuadas sem aprovação das entidades licenciadoras, contrariam o que o POOC definiu para este núcleo e não têm enquadramento nas ações previstas pelo PIR, pelo que não permitem que a APA emita as licenças a estas situações. Não sendo possível emitir as licenças, estão a ser avaliadas todas as situações para identificar os procedimentos necessários para a sua resolução, não estando previsto prazo para a sua conclusão».

Ou seja, a «emissão das licenças não pode ser concluída por terem sido efetuadas alterações nas áreas e nos requerentes. Nos diversos casos em que foram detetadas incoerências ao nível do requerente da licença, foram efetuados pedidos de esclarecimento junto dos interessados, não se encontrando todas estas situações ainda esclarecidas».

A APA lembra que «a alteração do requerente tem que assegurar que o novo requerente reúna cumulativamente condições determinadas pelo POOC, ou seja, ser descendente até ao segundo grau de pescadores residentes na área há mais de 10 anos, que exerça atividades associadas à pesca ou à exploração dos recursos da Ria Formosa e que a construção constitua sua habitação própria e permanente. Este processo está a decorrer, já tendo sido emitidas algumas licenças após estes esclarecimentos».

Por fim, não está previsto prazo ou que a implementação do PIR da Culatra passe para a gestão do município de Faro, «sem prejuízo de se protocolar a gestão dos espaços e equipamentos públicos, bem como a avaliação e adequabilidade com as demais normas legais e regulamentares aplicáveis, no âmbito da sua competência na gestão urbanística».

Cascas de bivalves são matéria-prima a rentabilizar

Sílvia Padinha, presidente da Associação de Moradores da Ilha da Culatra (AMIC), revela que foi adquirida uma máquina, feita por uma empresa de Olhão, para triturar as cascas de bivalves, um subproduto sem uso que resulta quer da atividade viveirista, pela mortalidade, quer do consumo na restauração. «O objetivo é utilizar as cascas na ilha, quer para aumentar as cotas dos viveiros, quer como fertilizante das zonas de compostagem coletiva, que também estamos a criar. Queremos viver numa lógica de economia circular, em que tudo possa ter aproveitamento». Por sua vez, André Pacheco, coordenador do projeto Culatra 2030, explica que a casca de ostra, «considerado um desperdício, é na verdade, uma matéria-prima com valor comercial. Os fertilizantes têm hoje um custo enorme e esta é uma grande fonte de carbonato de cálcio que pode ser colocada diretamente no solo. Também pode substituir a gravilha». Para já, a máquina de granulometria variável servirá a comunidade, mas o objetivo é criar uma economia de escala com os viveiristas da Ria Formosa.

Ostricultura atrai jovens culatrenses

«Devido ao facto de a associação ter vindo a apoiar a continuidade das atividades tradicionais da ilha, quer a pesca e o cultivo de bivalves, temos um conjunto de jovens a agarrar nas áreas que estavam concessionadas aos pais e avós», revela ao barlavento Sílvia Padinha, presidente da Associação de Moradores da Ilha da Culatra (AMIC). «Também quisemos que fossem os locais a explorar estes recursos» ao invés, por exemplo de grandes empresas estrangeiras. «Muitos jovens estão a apostar no cultivo da ostra que é mais rentável do que a produção de amêijoa. Claro que não será à moda antiga, mas com uma componente de inovação» e numa lógica de trabalho em equipa, de forma mais eficiente. Neste aspeto, a embarcação eletrosolar de uso comunitário «fará diferença, diminuindo os custos, pois poderá transportar até quatro toneladas de carga útil. Além disso, dará o exemplo de que é possível navegar na Ria Formosa sem utilizar motores de combustão e sem a poluir e contaminar», sublinha.

Dessalinização lenta e amiga do ambiente

André Pacheco, coordenador do projeto Culatra 2030, tem garantido financiamento para testar uma nova solução de dessalinização, que utiliza tecnologia térmica alimentada por energia solar, um processo que não produz efluentes contaminados e que usará o excesso de energia fotovoltaica produzida no núcleo. A solução será modular e de fácil aplicação. Será usada em combinação com as águas pluviais recolhidas nas açoteias do edificado, para consumo não potável, o que permitirá também reduzir os custos energéticos da importação de água para a ilha.

O projeto venceu o concurso SMILO – Zenon Islands fund call, promovido pela SMILO – Sustainable Islands. «Embora tenha um rendimento muito inferior ao da osmose inversa, trata-se de um processo regular e feito com os recursos endógenos para a cristalização do sal. A água poderá ser utilizada nas lavagens dos alimentos, na rega das hortas comunitárias, na criação de biodiversidade, naquilo que for possível», explica.

Para já, foram colocados redutores de caudais nas torneiras da Escola Básica e do Centro Social, onde também estão a ser recuperadas as calhas para recolha das chuvas e as cisternas. «Na verdade, trata-se de recuperar um pouco a autosuficiência das casas tradicionais algarvias, que tinham em conta as realidades locais e aquilo que havia disponível no território. Eram um exemplo de sustentabilidade». Além disso, é preciso lembrar que grande parte da Culatra só tem ligação à rede de água desde 2010.

Clube União Culatrense requalifica tenda

Estão a avançar os trabalhos de requalificação da tenda multiusos da Culatra, no Polidesportivo do Clube União Culatrense. Trata-se de um trabalho comunitário, em que todos participaram de forma ativa para transportar os materiais até ao espaço para a execução dos trabalhos.

A iniciativa é financiada pelo «Bairros Saudáveis», um programa público, de natureza participativa, para melhoria das condições de saúde, bem estar e qualidade de vida em territórios considerados vulneráveis. Segundo aquela coletividade, «este processo é mais um contributo para o cumprimento dos desafios sociais e ambientais, num compromisso sério com a Estratégia de Transição Energética, no âmbito do Projeto Culatra 2030».