Cortiça é a «arma secreta» do turismo industrial no Algarve

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Apesar de não ter um parque industrial comparável ao do norte do país, o Algarve tem a cortiça, um ativo que desperta a paixão entre turistas.

A Torre Natal, no interior do concelho de Faro, não é, de todo, um ponto turístico. Mas há quem faça questão de lá ir, para visitar as instalações da NF Cork, uma empresa que nasceu da vontade de inovar e de explorar todos os potenciais da cortiça.

Nascida de um negócio familiar, desenvolvido há mais de 50 anos pelos pais do companheiro de Tânia Loução, a empresa tem estado de portas abertas aos turistas ao longo dos últimos cinco anos.

«Neste momento, estamos a acolher entre 10 a 15 visitas por semana. Está a crescer bastante» diz a responsável, e são sobretudo estrangeiros do norte da Europa interessados em conhecer mais sobre a pele do sobreiro. A visita custa 20 euros por pessoa. Grande parte é organizada pelos hóteis onde estão hospedados, mas também vem, com operadores e até pelo próprio pé.

«Quem vêm depois recomenda aos amigos nos seus países de origem. Aparecem-nos aqui pessoas do nada, transeuntes e a pedir para visitar a fábrica. Andam a passear no meio do fim do mundo, e querem ver» o que ali se faz. E o que é? «Estamos mais focados na produção de peças de design, que traduzem sempre a nobreza deste material» e também na produção, blocos de cortiça, que reutilizam desperdícios de outros processos, por exemplo, do fabrico de rolhas e granulados. E claro, o produto mais vendido, que são os laminados de cortiça para decoração de paredes.

Tânia Loução.

«Além de bonito, é um excelente isolamento térmico e acústico. Este ano estamos a subir as vendas em relação aos três últimos», cuja média são mais de 20 mil metros quadrados de placas cortadas em três dimensões padrão ou por medida. «Vai tudo para fora, não fica nem uma folha em Portugal. Acho que se aplica o ditado, casa de ferreiro, espeto de pau. Nós com a nossa cultura, não temos o hábito de ter cortiça nas nossas casas. Há alguns hotéis e restaurantes que já pedem», mas o grosso vai para países como Alemanha, Holanda e mais recentemente, Austrália.

Os visitantes também «acabam por comprar peças que temos em stock, ou mandam fazer e depois enviamos-lhes as encomendas. Há também uma grande percentagem de novos residentes do Algarve, que compram as casinhas antigas e querem renovar com materiais locais», diz Tânia Loução.

O aspeto de economia circular desta empresa também «encanta» os turistas. «Reciclamos rolhas e subprodutos de cortiça, não há desperdícios, até o pó reutilizamos. Há uma continuidade da reciclagem em todo o processo e por isso, acaba também por haver uma conexão com a natureza no que fazemos. As pessoas acham o máximo», diz. Tanto assim é que, resorts de topo como Vila Vita Parc ou Vila Monte organizam os seus próprios grupos. «Fazemos algo mais intimista, mais exclusivo como um beberete, com chá e doces regionais e uma visita mais longa».

A empresa é forte na transformação, tem uma parte de carpintaria onde as peças mais delicadas são acabadas e uma sofisticada máquina de corte CNC em fresa. Dos blocos de cortiça resultam, por exemplo, cadeirões ou bancos de bar. «É como fazer um bolo, usamos granulados de cortiça nos seus vários tamanhos e vai todo ao forno», exemplifica, enquanto aponta para umas amostras coloridas com pigmentos naturais, encomendadas por um designer norte-americano para fazer uma mesa. 

E há material suficiente? «Todos os anos, é uma disputa. Esta é a altura prinicipal de começarmos a ir ao campo. A compra da cortiça é feita boca a boca. Não há papéis assinados. Ligo para os fornecedores e regateamos um pouco o preço. Mas têm muita palavra. Chega ao dia, levamos o camião, vai-se pesar e pagamento e ninguém sai sem pagar. Mas nunca é suficiente. Estamos a falar de vários fatores. Há industrias grandes que precisam de muita matéria-prima e que têm elevado poder de compra. Por isso,  conseguem abarcar o máximo. Depois, temos o problema dos incêndios que, infelizmente, vêm encarecer a cortiça, dão cabo do ambiente e das florestas. Apesar dos sobreiros serem as primeiras árvores a recuperar, e de podermos comprar a cortiça queimada que é usada na construção civil, a verdade é que encarece e escasseia».

Canadianos em São Brás de Alportel

Visitável há mais de 10 anos, a Eco-Fábrica de Cortiça tem atraído sobretudo a atenção de canadianos e cada vez mais de norte-americanos, diz a guia e responsável pelas reservas Ângela Ribeiro. Aqui é uma empresa, a Algarve Rotas | Pictoresque Journey – Indústrias de Património, Cultura, Natureza e Inovação para o Turismo que trata de tudo. Há várias opções de visita, horários e preços disponíveis. A entrada básica custa 14,50 euros por pessoa e dura 50 minutos, com direito a prova de licor regional.

«A época alta aqui é a primavera e o outono. É exatamente o contrário do turismo sazonal do Algarve. Este mês, tivemos quase 1000 pessoas, entre grupos organizados de operadores e visitantes ocasionais que compram os bilhetes nas plataformas online», contabiliza. Uma estatística mais ou menos constante que segundo a guia, antes da pandemia, era facilmente ultrapassada.

E o que atrai os turistas? «Procuram algo muito específico, muito local. Querem saber o que acontece até se chegar à rolha de cortiça do vinho pois não sabem nem têm a mínima ideia de nada», responde. Na Eco-Fábrica não se produzem objetos, mas matéria-prima a partir da cortiça crua.

«Na visita explicamos o ciclo do descortiçamento, e mostramos a diferença entre a cortiça virgem e a amadia. Também explicamos o que os trabalhadores fazem» na fábrica e nos montados, uma interação que suscita sempre muita curiosidade. «As pessoas perguntam-lhes muita coisa. Acho que é o que mais gostam. Querem saber tudo», afirma.

Com sorte, os visitantes podem ver o tradicional processo de cozedura, com água a fumegar acima do ponto de ebulição, aquecida por uma caldeira que queima os desperdícios (refugo), duas paletes por dia. Numa bancada de trabalho, João Gago, puxa a curva faca de facear, na direção do corpo, em golpes certeiros. Sabe tirar a cortiça da árvore, que é um trabalho mais duro, cansativo e perigoso, implica andar em cima das árvores e risco de cair com a humidade.

Diz que o algarvio ainda extrai com a técnica tradicional dos canudos, método abandonado pelo o alentejano que a tira em ripas. A primeira tarefa do dia é afiar a faca no rebolo. Em média dura dois meses, até partir de desgaste.

«O corpo nunca cortei, mas as mãos, várias vezes», diz. Há seis qualidades diferentes e calibres para avaliar. Uma tarefa automática para este homem que já tem nos dedos o pé de linhas, uma espécie de pequena régua para as medições da densidade. Daqui, as pranchas saem para outras fábricas, por exemplo, de rolhas. No caso do champanhe, apenas vai a cortiça ao natural, pois é o produtor que trata de todo o processo. Ainda assim, segundo Ângela Ribeiro, é a arroba mais lucrativa.

«Em São Brás chegámos a ter 150 fábricas. Quando comecei, haviam 56. Hoje, há duas a trabalhar. Antigamente, uma fábrica gastava 20 mil arrobas de cortiça durante o ano, com 20 ou 30 homens a trabalhar. Hoje, uma fábrica destas, 120 mil arrobas não chega para o ano, com três ou quatro homens», compara. Antes da visita terminar, os turistas passam por uma mesa onde há objetos variados como cucharros, volantes de bagminton e até juntas de motor. «E há quem queira levar consigo placas de cortiça na bagagem» para mostrar noutras paragens, conclui a guia.

Uma forma diferente de descobrir o território durante todo o ano

A segunda edição do roteiro «À descoberta do Turismo Industrial», decorrerá em todo o país, de 10 a 16 de abril. O Algarve estará representado por 14 parceiros que oferecem 19 atividades, entre visitas guiadas, exposições e degustações. Teresa Ferreira, diretora do departamento de Dinamização de Recursos do Turismo de Portugal, explica a importância deste nicho, que se enquadra no turismo cultural: «no fundo, esta oferta está muito ancorada em ativos concretos e na identidade dos territórios. Tem muito a ver com aquilo que foram e que são, do ponto de vista da sua dinâmica económica e social. Por outro lado, estamos a falar num tipo de experiências que pode ser usufruida ao longo de todo o ano e que pode ser trabalhada em rede, o que dá uma massa crítica muito interessante».   

No Algarve, estão identificados 60 recursos com potencial, entre conserveiras, salinas, adegas, produções de azeite, vinho, medronho e de citrinos, empresas de cortiça e do sector extrativo (no caso da mina de sal-gema da Campina de Cima, em Loulé), 21 dos quais já apresentam um oferta organizada para visitas. O ano passado participaram apenas cinco entidades nesta agenda.

«A nossa expectativa é que o turismo industrial venha a ter a evolução e a abordagem que tem tido o enoturismo, em que os produtores vitivinícolas perceberam que, associando uma experiência de contacto com o processo produtivo à degustação dos seus produtos, ganham um potencial de crescimento entre os consumidores. As fábricas em laboração também podem encontrar essa oportunidade de negócio. Creio que temos margem para crescer no Algarve com estes recursos inusitados. Podem contribuir para que os turistas fiquem mais tempo na região ou regressem porque têm mais coisas para fazer do que estariam à espera», concluiu.  O roteiro é organizado pelo informal Grupo Dinamizador da Rede Portuguesa do Turismo Industrial, da qual a Região de Turismo do Algarve faz parte.

Experiências aliam tradição e modernidade

Segundo Teresa Ferreira, diretora do departamento de Dinamização de Recursos do Turismo de Portugal, «o turismo industrial tem duas dimensões. Por um lado, a industria viva, as fábricas e empresas que estão em laboração com os seus processos produtivos em funcionamento e que se disponibilizam para abrir portas aos visitantes e o contacto com o trabalho e com os produtos (quando se justifica). Por outro lado, há a dimensão do património industrial, de toda a história associada a atividades que já não existem, mas que estão musealizadas e que ainda podem ser apreendidas pelos visitantes». É isso que o Museu de Portimão pretende mostrar, no domingo, dia 16 de abril, às 15h00, na forma de uma visita guiada sob o tema «No Tempo das Fábricas». Os participantes poderão conhecer a realidade fabril e social de há algumas décadas e a sua relação com a envolvente social e urbana da cidade. A atividade é gratuita, embora careça de inscrição prévia por telefone (282 405 230) ou e-mail (museu@cm-portimao.pt).