No CHUA, «não há nenhuma especialidade em que as coisas estejam bem»

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Miguel Guimarães diz que «os médicos não podem continuar a ser bodes expiatórios das más políticas de saúde», e mais uma vez o bastonário traçou um diagnóstico negro da saúde pública algarvia.

A reunião com a administração e profissionais de saúde demorou e acabou por atrasar a agenda de trabalho de Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, na manhã de quarta-feira, dia 17 de julho. O responsável esteve na unidade de Faro do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (CHUA), e, mais uma vez, traçou um diagnóstico preocupante.

Os problemas «são de facto muitos. Antes de mais, este é um hospital que já não tem capacidade física sequer para os serviços e tem algumas condições que não são desejáveis», sintetizou aos jornalistas.

«Além das dificuldades internas, a psiquiatria fica numa unidade totalmente à parte. Fica num albergue que não tem condições para os doentes, não tem condições para os funcionários, não tem condições de segurança para quem lá trabalha e é uma situação que está por resolver», começou por enumerar.

O clínico escusou-se a fazer considerações acerca da necessidade de um novo hospital central, «que já devia estar construído. É uma medida absolutamente importante, não para resolver os problemas todos que existem, mas para resolver, parcialmente, os que existem», disse apenas.

«O problema é que o poder político demora muito tempo a tomar decisões. Faro já foi a segunda prioridade nos novos hospitais que deviam surgir em Portugal», prioridade que foi ignorada em favor de outras regiões. «Portanto, não há um fio condutor que permita resolver a situação que está a acontecer neste momento no Algarve e que, na minha opinião, é muito grave. Não há nenhuma especialidade em que as coisas estejam bem», elucidou.

Desafiado pelos jornalistas a explicar as principais dificuldades, o responsável deu o exemplo da ortopedia, «que é paradigmático. Os neonatologistas estão em crise absoluta. Esteve connosco o diretor do serviço e está aterrado, porque estão a fazer muito mais urgências do que as que devem fazer para tentar assegurar o máximo de dias possíveis o apoio às maternidades. Não está a ser fácil. Se me perguntar qual o Hospital onde aquilo que as equipas-tipo definidas na legislação e que tem a ver com boas práticas, o sítio onde ele é menos cumprido, provavelmente é o CHUA».

E «por não existirem ortopedistas suficientes no Serviço Nacional de Saúde, os casos prioritários acabam por ser operados bem mais tarde do que deviam. Em Faro deviam ser quatro, em Portimão dois, e muitas vezes está um. A população normal do Algarve andará à volta das 500 mil pessoas e na altura do verão triplica. A patologia ortopédica aumenta muito nesta altura, devido a quedas, acidentes».

A pergunta, contudo, que se impôs ao bastonário é qual a razão de os concursos para a contratação de médicos no Algarve continuarem sem interessados.

Urgência do CHUA
Urgências do CHUA – Faro

«Essa é uma questão importante não para colocar a quem tem a responsabilidade da saúde em Portugal, que é a Ministra da Saúde (Marta Temido)», respondeu Miguel Guimarães.

E justificou. «Os médicos estão desmotivados. Neste momento é difícil fixar médicos no Algarve e se nada for feito com urgência vai ser cada vez mais difícil. Falei com cerca de 100 médicos, dos quais, alguns já estão a pensar em ir embora. Se não se criam rapidamente condições de trabalho, se não se der acesso às tecnologias e aos equipamentos necessários para tratarem os doentes de acordo com as boas práticas, se não lhes garantirem segurança clínica e qualidade naquilo que estão a fazer, as pessoas procuram outras alternativas», explicou.

«Às vezes há um ortopedista para o Algarve inteiro, isto não é possível para nenhum país. Porque é que saíram tantas pessoas do Serviço Nacional de Saúde? No caso concreto do CHUA? Vão procurar outros projetos. Os médicos não podem continuar a ser os bodes expiatórios das más políticas de saúde», sublinhou.

Para o bastonário, «o Algarve devia ter incentivos globais para ter massa crítica suficiente para ser de facto um bom local onde as pessoas sentissem que podiam constituir família e ficar a trabalhar. Esse é o problema das regiões mais periféricas e sobretudo das mais desfavorecidas. Esta política de incentivos é para a sociedade e não seria apenas para os médicos. Em relação ao Algarve, é evidente que precisa de ter incentivos para as pessoas virem para cá, porque aparentemente não têm o resto. O Algarve tem bom tempo, excelente comida, muito trabalho na saúde, mas depois não têm as condições. O Hospital de Faro, neste momento, não tem condições».

Mobilidade obrigatória é pouco democrática

Questionado sobre as medidas de obrigatoriedade para fixar os médicos em zonas do país que não estão bem servidas, sugeridas recentemente pelo PSD, o bastonário da Ordem dos Médicos considerou a ideia como sendo pouco democrática.

«É muito difícil conseguir-se obrigar as pessoas. Estamos num país democrático em que as soluções para resolver os problemas devem ser enquadradas dentro de um Estado de direito, um Estado democrático. Se o PSD acha que o país está em estado de sítio é uma coisa, mas eu não chegaria tão longe. Em circunstâncias normais, obrigar as pessoas a irem trabalhar para o sítio A ou B, significa estar a empurrar as pessoas para fora do sistema. Isto é, se as pessoas sentirem, além da escravatura diferenciada que já existe, em que os profissionais estão a fazer horas consecutivas, não por causa dos políticos, não por causa do governo, não por causa da Assembleia da República, mas por causa dos cidadãos, dos doentes que têm necessidades de cuidados de saúde, é bom que isto fique claro», argumentou.

«Tudo o que sejam atitudes ou tentativas de soluções que passem por obrigar as pessoas, a resposta é imediata, as pessoas saem. Já perdemos muitos milhares de médicos para fora do SNS, seja para o sector privado, seja para os vários países da Europa Ocidental. Os médicos portugueses têm uma excelente qualidade de formação. É o nosso principal sinal de distintivo relativamente a serviços públicos. Não é que temos mais meios, ou melhores condições de trabalho que países como a Inglaterra, França ou Alemanha. Temos os melhores médicos e são desejados em toda a Europa ocidental. Este é um sinal de alerta para quem tem responsabilidades políticas», garantiu.

«As pessoas que trabalham neste momento no SNS ganham mal, ganham mal os enfermeiros, ganham mal os médicos, ganham mal os assistentes operacionais. Se calhar, devia ser feito um esforço para que tivessem melhores remunerações. Devia-se fazer um esforço para quem tem de fazer mais de 150 horas de urgência, além daquilo que é o seu trabalho normal, tivesse, pelo menos, uma remuneração equivalente àquilo que é pago aos médicos tarefeiros, através de empresas prestadoras de serviços».

«Não é fácil resolver as coisas de um dia para o outro no Algarve, mas é possível começar a resolvê-las. Até agora ainda não vi sinais positivos de que estejam a ser resolvidas».

«O que governo anterior fez e este continuou, é investir tudo nos grandes centros urbanos, em Lisboa e Porto, nos grandes hospitais públicos e privados. O Ministério transferiu, no ano passado, para o sector privado e social, 2,4 mil milhões de euros para pagar aquilo que não conseguiu fazer no Serviço Nacional de Saúde», concluiu Miguel Guimarães.

Utentes estão seguros, apesar da sobrecarga dos médicos

Durante a visita à unidade de Faro do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (CHUA), Miguel Guimarães, deixou uma palavra de tranquilidade aos utentes.

«As pessoas estão sempre em segurança ao vir ao Hospital de Faro, que tem profissionais de excelência em várias áreas. É com estes profissionais que os nossos doentes têm de contar. Têm feito um esforço brutal para conseguirem assegurar o máximo de serviços, sobretudo nesta altura» de época alta, e no «serviço de urgências, mesmo com deficiências».

«A população tem de continuar a confiar nos seus profissionais, como médicos, enfermeiros e todos os outros, pois fazem um bom trabalho. Agora nem sempre têm as melhores condições. O encerramento que tem acontecido das maternidades, como a de Portimão, é uma necessidade absoluta de não conseguirem que quando uma criança nasça tenha o apoio de um especialista no caso de acontecer uma situação anormal», sublinhou.

Miguel Guimarães no CHUA

«Há um enorme esforço de quem cá trabalha para tentar tentar dar a melhor resposta possível à população. Conseguiram reduzir algum tempo de espera, portanto há coisas positivas. Por exemplo, na área do rastreio do cancro da mama têm resultados fantásticos a nível nacional. Há coisas boas, agora também há muita coisa que não está bem e que tem de ser corrigida».

«Na ortopedia, às vezes só há um médico, mas está lá um para dar solução. Eu não valido isto e se estivesse no lugar da Ministra (Marta Temido) tentava resolver isto. Estes ortopedistas fazem vários períodos de urgência, às vezes de 24 horas por semana para manterem uma resposta», exemplificou.

Este esforço contudo, tem um preço. «As taxas de burnout dos médicos são muito elevadas neste momento. 66 por cento dos médicos têm aquilo que se chama exaustão emocional, outros têm uma desmotivação grande. Estamos numa situação crítica».

«Espero que não se torne moda» transferir grávidas e doentes

Em declarações aos jornalistas, o bastonário da Ordem dos Médicos mostrou-se muito preocupado com a situação da Pediatria no Serviço Nacional de Saúde de Portimão.

«Tive a informação que em agosto a escala tem 10 dias por preencher, e em setembro tem 12 dias por preencher» e com a atual equipa diminuta, «é quase impossível assegurar a urgência 24 sobre 24 horas em Portimão». Uma situação que complica ainda mais a capacidade de Faro responder às grávidas em trabalho de parto.

«É péssimo porque implica muitas vezes que seja dada uma saída única às pessoas, que é irem parar a Évora ou Lisboa. Eu espero que isto não se torne a moda». O bastonário lembrou ainda os casos dos doentes em situações mais complexas nalguma área, como a cirurgia pediátrica, ortopedia ou cirurgia vascular tenham de sair da região.

«Isto continua a acontecer e não devia. O Hospital de Faro tem um estatuto de Hospital Central com uma urgência polivalente e esse estatuto devia ser exercido em pleno. Uma pessoa só devia sair do Algarve para Lisboa, em casos verdadeiramente excecionais e não em casos em que as coisas podiam ser feitas cá. Tem de haver investimento».

Incentivos grátis afinal são cobrados

Miguel Guimarães desvalorizou os incentivos, como alojamento gratuito, para atrair médicos para o Algarve e que já motivou queixas.

«Um deles, anunciado pelo Ministério da Saúde/ ARS Algarve é que os médicos que viessem para cá em mobilidade temporária, iriam ter direito a alojamento gratuito. Dois médicos queixaram-se a mim diretamente, pois fizeram a sua candidatura e afinal esse alojamento gratuito era um quarto que custaria cerca de 20 ou 30 euros por dia».