Cavalos-marinhos: há um aumento «apreciável» da população na Ria Formosa

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Esforço de conservação dos cavalos-marinhos na Ria Formosa está a resultar segundo os cientistas do Centro de Ciências do Mar (CCMAR). Há um aumento «apreciável» da população.

Foi uma viagem curta de barco, mas com muitos preparativos, e até nasceram cavalos-marinhos, durante o percurso entre o Centro Marinho do Ramalhate da Universidade do Algarve, e um dos santuários ao largo de Faro onde, ontem ao início da tarde, foram libertados animais criados em cativeiro.

Antes da largada dos cavalos-marinhos, Rui Santos, investigador e professor associado do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve, fez um primeiro mergulho para verificar as condições. Foi preciso aguardar que a corrente acalmasse um pouco. Isto porque «vamos libertar os cavalos-marinhos numa zona onde foi feita uma intervenção nas ervas marinhas» com cerca de 100 metros quadrados (m²). Por outro lado, os animais, tiveram de se habituar, aos poucos, à temperatura da água da Ria.

«É o habitat ideal e não queremos que sejam arrastados quando abrirmos as caixas de transporte», explicou o investigador Jorge Palma antes de mergulhar.

Apesar de serem animais criados em cativeiro, a libertação cumpre «todos os requisitos obrigatórios de quando se faz uma reintrodução. Têm o mesmo património genético. Os seus avós vieram da Ria Formosa e também já foram libertados».

No plano atual, faz mais sentido libertar animais da espécie que é menos abundante, o Hippocampus hippocampus (focinho curto). Em termos de proporção, há um destes para cada dez Hippocampus guttulatus (focinho longo), a outra espécie mais frequente na Ria Formosa.

A monitorização é mensal. «Todos os animais foram previamente fotografados porque é possível verificar se os que vemos nos santuários são aqueles que foram libertados. O padrão de pintas e o perfil da cabeça varia», características individuais únicas que são reconhecidas por software.

Tendo em conta a monitorização realizada pelos investigadores desde a última libertação, em novembro de 2021, «o balanço é positivo. Este ano, felizmente, em geral, já vemos um aumento da população na Ria Formosa, quer nos santuários, quer em certos locais da Ria Formosa. Mas sim, enquanto que houve um decréscimo que chegou aos 96 por cento em 2021, a verdade é que já vemos um aumento que esperemos que se mantenha», afirmou Jorge Palma aos jornalistas.

Nos últimos 10 anos, já foram criados milhares de animais no Centro Marinho do Ramalhete, pelo menos, 14 gerações consecutivas. E têm havido outras, fora desta contagem, de forma a evitar a consanguinidade. Jorge Palma reconhece que hoje há muito conhecimento, mas a tarefa tem sido complicada.

«Criar um animal em cativeiro é uma ferramenta de conservação, serve para a investigação e também pode ser um recurso para a aquacultura, embora o cultivo de cavalos-marinhos é muito mais difícil do que o de peixes produzidos comercialmente para consumo humano. Os juvenis quando nascem já são uma miniatura dos adultos. Quando saem da bolsa do pai já têm de comer com as proporções que precisam. Precisam de mais ácidos gordos do que proteína. É uma especificidade» e precisam sobretudo do alimento natural, à base de pequenos crustáceos.

«Temos tido vários projetos para estudar os requisitos nutricionais. Os cavalos-marinhos necessitam, por exemplo, de carotenos, tal como nós, enquanto vertebrados. Os ovos cor de laranja contém os pigmentos que a fêmea absorveu na alimentação que depois passam aos juvenis. Se lhes dermos um alimento que for fraco em carotenos, vão ter menos pigmentação, vão desenvolver-se mais lentamente e a sobrevivência ressente-se. Portanto, há todo um conjunto de variáveis que ao longo destes anos temos tentado perceber melhor», descreveu.

Quando em 2007 Jorge Palma começou a estudar o cultivo em cativeiro, «a taxa de sobrevivência era zero. Hoje ronda os 50 a 60 por cento».

Mas se há algo muito importante que os investigadores já perceberam é que os cavalos-marinhos estão intrinsecamente dependentes do meio ambiente, ou seja, da Ria Formosa.

«Mesmo que tenhamos um bom perfil nutricional, se os alimentarmos apenas com ração artificial que é estéril em termos de enzimas e aminoácidos que precisam para processar a digestão, não crescem nem sobrevivem» com sucesso. «É sempre preciso uma fração de alimento natural».

«Por este motivo estão muito dependentes» do meio ambiente, mesmo durante o processo de criação em cativeiro. E esse é também um dos motivos que faz com que o CCMAR seja hoje o único na Europa a reproduzir, criar e a aprofundar o estudo deste animais marinhos.

A qualidade ambiental, contudo, está em mudança «pela pressão que a Ria Formosa sofre. Houve uma altura em que a pesca ilegal para consumo asiático impactou diretamente nas populações», e hoje o problema é sobretudo «a degradação dos fundos», referiu Jorge Palma.

Jorge Palma (à direita).

As alterações climáticas também se fazem sentir. «Este ano tivemos algumas dificuldades. Nós conseguimos o alimento nas lagoas ao redor do Ramalhete. Em julho, quando aconteceu aquela onda de calor brutal, a água ultrapassou os 30º, o que para a vida marinha é uma temperatura muito elevada. Com a evaporação, a salinidade chegou aos 52 por cento. Para terem uma ideia, esta aqui está nos 35,7 que é salinidade média da Ria Formosa nesta altura do ano. O oxigénio diminuiu e morreu tudo. Ficámos praticamente sem alimento para os cavalos-marinhos», lamentou o cientista.

Foto: João Rodrigues/Chimaera Visuals.

Invasão de Caulerpa pode condicionar disponibilidade de comida

Segundo Rui Santos, «estamos a estudar a ecologia trófica dos cavalos-marinhos. Ou seja, de que forma é que aquilo que comem está dependente das ervas marinhas. Estamos a comparar as fontes alimentares, sobretudo na Caulerpa prolifera, que é uma alga invasora que neste momento está a ocupar toda a Ria Formosa. Queremos perceber se há algum impacto na disponibilidade de comida dos cavalos-marinhos e também nos fundos sem vegetação, que cada vez são mais raros, porque está tudo a ser ocupado pela Caulerpa».

Os cavalos-marinhos são carnívoros, alimentam-se de crustáceos, moluscos e vermes. Para já, «temos as amostras feitas e agora estamos a analisar tudo em laboratório. Uma coisa que já sabemos é que a diversidade dos diferentes organismos que os cavalos-marinhos marinhos comem é maior nas ervas marinhas do que na Caulerpa», comparou.

Foto: João Rodrigues/Chimaera Visuals.

Também o restauro das ervas marinhas nas zonas de santuário, «está a ser um problema» devido à proliferação da alga invasora, onde até há pouco tempo, no início do projeto  SEAGHORSE, não existia.

Segundo Rui Santos, a Caulerpa «é uma espécie do Mediterrâneo e está a expandir-se geograficamente devido às mudanças das condições naturais. As águas de inverno agora estão mais quentes» o que tem facilitado a invasão de sistemas lagunares como a Ria Formosa.

É «completamente impossível» retirar a alga invasora dos fundos. «A primeira fase de uma espécie com características invasoras é ocupar o espaço todo. Ao longo dos anos, as outras espécies vão reagindo até se atingir um certo equilíbrio. É o que normalmente acontece, um ajuste natural, ao longo dos anos. Agora, a Caulerpa nunca mais sairá daqui e vamos ver o que implica para a sobrevivência dos cavalos-marinhos», afirmou. «Para já, o problema é que esta alga não tem predação» que dificulte a propagação.

Rui Santos.

De qualquer forma, «do ponto de vista dos cavalos-marinhos, estamos otimistas». Desde que se iniciou a monitorização, há pouco mais de um ano, segundo Rui Santos, «há um aumento apreciável» na população da Ria Formosa. Os investigadores acreditam que os cavalos-marinhos também se vão adaptar às condições em rápida mudança no habitat. «Esperemos é haja suficiente variedade de alimento na Caulerpa» para o esforço de conservação não seja posto em causa.

Rui Santos recorda que o projeto SEAGHORSE, financiado pela Fundação Belmiro de Azevedo engloba várias vertentes, desde o restauro das ervas marinhas nos santuários, ao repovoamento com cavalos-marinhos criados em cativeiro no Centro do Ramalhete. Há ainda uma componente de educação ambiental. «Fazemos ações de formação de professores nas escolas para esta temáticas e também temos organizado workshops participativos com decisores políticos e gestores» do Parque Natural da Ria Formosa. Para janeiro de 2023, está previsto um novo workshop colaborativo dedicado aos operadores das empresas marítimo-turísticas e de aquacultura.

Vigilância dos santuários é «assídua»

«Esta é uma missão conjunta de todos os responsáveis pela conservação destes valores naturais e também dos cidadãos», disse Ana Margarida Magalhães, chefe do departamento de conservação e biodiversidade do ICNF Algarve, que acompanhou a iniciativa.

«Tudo isto surge no âmbito de um plano de salvaguarda dos cavalos-marinhos realizado por um grupo de trabalho. São uma espécie emblemática que traz a população a este desiderato. Mas o que está aqui em causa é a biodiversidade relacionada com este habitat e que temos toda a obrigação de zelar para que tenha continuidade. O cavalo-marinho foi a espécie que nos trouxe tudo isto e acabou por fazer passar a mensagem de forma mais assertiva», sublinhou.

Ana Margarida Magalhães, chefe do departamento de conservação e biodiversidade do ICNF Algarve.

Neste caso, o papel do ICNF, «além de estamos atentos e de termos coordenado a maior parte das ações do plano de salvaguarda, temos tido ações de fiscalização mais assíduas e conjuntas com a Unidade de Controlo Costeiro (UCC) da Guarda Nacional Republicana (GNR). Os nossos vigilantes da natureza já têm mais disponibilidade para andar na Ria Formosa. Temos mais recursos humanos para alocar não só à área marinha, mas também à área terrestre. Temos realizado muitas ações, têm sido apreendidas artes de pescas e a vigilância destas duas áreas de refúgio é assídua. O retorno tem sido positivo», garantiu a responsável.

O santuário onde foi feita a libertação foi criado por edital no início de 2020 e tem vindo a ser trabalhado. «Fizemos uma requalificação ambiental, colocámos algumas estruturas para os animais se poderem agarrar», visto que os cavalos-marinhos têm cauda preênsil e necessitam de apoios.

Em breve, as áreas vão ser sinalizadas. Na zona da Culatra (560 mil m²) serão colocadas duas bóias, aprovada pelo Instituto Hidrográfico para não entrarem em conflito com a navegação e estacas consoante a profundidade. Na zona próxima de Faro (100 mil m²), à margem do canal principal, serão colocadas placas informativas, iluminadas durante a noite por energia fotovoltaica. Terão o contacto direto das autoridades marítimas para que quem suspeitar de alguma atividade ilícita poder denunciar.

Apesar de este ano a época reprodutiva já ter terminado, os investigadores mantêm um stock de animais que servem até outros objetivos científicos. «Por vezes doamos exemplares aos Centros de Ciência Viva e ao Oceanário de Lisboa».

Desde a altura em que Jorge Palma começou a trabalhar com os cavalo-marinhos marinhos selvagens em laboratório muito mudou nas consciencialização coletiva. Graças também ao trabalho dos cientistas, o público está mais sensibilizado para o icónico animal da Ria Formosa.

O selo «Escola Azul» também garante que as novas gerações, em Faro e Olhão, no futuro, continuem a preocupar-se com a conservação do ambiente, da Ria e dos seus cavalo-marinhos.

O barlavento agradece à empresa marítimo-turística iSea Yachting por ter transportado os jornalistas.