Candidatura transfronteiriça ao fundos europeus permitirá a recuperação da Caravela Boa Esperança. Turismo do Algarve vai transformar a histórica embarcação num Centro Interpretativo dos Descobrimentos.
O cada vez mais evidente estado de degradação da Caravela Boa Esperança, ancorada junto à Marina de Lagos, já tinha causado polémica e mal-estar nas redes sociais. Na verdade, há anos que o casco da histórica embarcação não era pintado, segundo o que o barlavento apurou nos estaleiros da Portinave, em Portimão, onde atualmente aguarda a entrada em doca seca para reparações de fundo.
Nos últimos tempos, o barco tornou-se numa pedra no sapato do armador, neste caso, o Turismo do Algarve, mas até ao final do próximo ano irá ganhar nova vida no âmbito de um projeto envolve Câmara Municipal e Centro de Ciência Viva de Lagos e que conta com 400 mil euros de orçamento.
«Sim, a caravela é um ativo que vale a pena valorizar, mas para isso é preciso despender meios que nem sempre é possível disponibilizar. Aquilo que fizemos, em julho de 2018, foi apresentar uma candidatura para um projeto que nos permitisse financiar a reabilitação da Boa Esperança, transformando-a num Centro Interpretativo alusivo à época dos Descobrimentos», diz João Fernandes, presidente do Turismo do Algarve, que desde o início do mandato quis resolver esta situação.
Não foi fácil, segundo diz, encontrar uma solução, que acabou por surgir ao abrigo do programa INTERREG VA Espanha – Portugal (POCTEP), com uma candidatura designada como «Exploraterra – Preservação, valorização e promoção do património cultural relacionado com a primeira circum-navegação e as expedições marítimas geográficas».
O orçamento total ronda os 400 mil euros e tem um prazo de execução até ao final de 2022. Segundo o cronograma apontado por João Fernandes, a adjudicação das reparações será feita muito em breve.
«Aquilo que se espera é que até ao final de fevereiro a caravela esteja recuperada, pois nesta fase há uma lista grande de manutenção».
No fundo, «tentamos reunir recursos para fazer da caravela um espaço de visitação regular, mas com todas as condições para que essa visita seja mais rica, com conteúdos criados de raiz e até aproveitando algum espólio que a Câmara Municipal de Lagos possa ter».
O caráter itinerante que esta réplica das embarcações usadas pelos descobridores portugueses do século XV teve no passado recente, não deverá, contudo, repetir-se. A ideia é colocá-la fixa num lugar condigno de Lagos, embora nem o autarca nem o presidente do Turismo do Algarve possam, para já, revelar onde.
«À partida não irá ficar no mesmo sítio onde tem estado. Já temos um novo local definido, embora ainda não esteja fechado», diz apenas João Fernandes, até porque o sítio em questão envolve a jurisdição e o parecer de várias entidades do Estado, um processo que poderá não estar em linha com o prazo do projeto.
«A ideia é que a caravela possa vir a ter um berço, em lugar abrigado, que não fique sujeita às mudanças de maré», acrescenta.
No entanto, isso não é limitação para o que o Turismo do Algarve prende fazer, ao abrigo da candidatura «Exploraterra».
«Vai ter uma projeção internacional. Os projetos POCTEP têm esta característica de colocar parceiros transfronteiriços em consonância. Neste caso, temos uma parceria com a Nau Victoria», que esteve recentemente em Lagos, atraindo grande curiosidade junto da população e turistas. «Vamos fazer uma promoção conjunta nos nossos principais mercados emissores», diz.
A Nau Victoria, em comparação à Boa Esperança, tem uma grande Fundação (Fundación Nao Victoria) que a suporta com um financiamento robusto e serve um conjunto de atividades diversificadas. Já a caravela algarvia, em condições normais, «cada vez que ia ao estaleiro fazer manutenção preventiva, os custos ascendiam aos 100 mil euros. Por isso é que queremos tê-la agora numa estrutura mais diminuta em que a relação custo/ benefício é muito mais vantajosa. Já não era possível tê-la a degradar-se ano após ano por falta de recursos e nós somos os primeiros a admitir isso», admite João Fernandes.
E mais. «Além da reabilitação, a ideia é que se crie um novo modelo de gestão corrente, entre a autarquia de Lagos, o Centro de Ciência Viva e até o Clube de Vela de Lagos. Penso que este ativo poderá vir a ser muito valorizado pela participação das forças vivas da cidade», acredita.
Terá «uma bilhética de acesso, cujas verbas vão ajudar nas despesas regulares de manutenção» e a Boa Esperança será mais um ponto de interesse a juntar-se à forte oferta cultural, que inclui o renovado Museu de Lagos – Dr. José Formosinho, a Rota da Escravatura e o Forte Ponta da Bandeira.
Ouvido pelo barlavento, Hugo Pereira, presidente da Câmara Municipal de Lagos, considera que «a caravela já faz parte de Lagos enquanto equipamento que representa um pouco da nossa História e é algo que queremos continuar a preservar. Depois de reabilitada, queremos que deixe de ser um mero postal da cidade e que ganhe uma nova vida. Queremos que possa mostrar muito mais do que apenas a embarcação. Por isso, a sua importância terá que ser reforçada. É nesse sentido que estamos agora também a trabalhar».
Histórico de relações públicas e de cinema
Contas feitas, nas viagens que fez ao estrangeiro, a Caravela Boa Esperança chegou a ter mais de 50 mil pessoas a bordo, que quiseram conhecer esta réplica, tão aproximada quanto possível, de um navio do século XV. Inicialmente propriedade da Associação Portuguesa de Treino de Vela (APORVELA), a caravela foi feita por especialistas de construção naval em madeira, de acordo com o que se sabe das regras da construção naval daquele tempo, mas tendo em atenção os atuais requisitos de segurança e algum conforto. Foi lançada à água a 28 de abril de 1990 e adquirida em 2001 pela RTA para divulgar a história algarvia no mundo, por 75 mil contos, cerca de 375 mil euros hoje.
Este tipo de navio, de origem mourisca, foi o eleito pelo Infante D. Henrique para os seus empreendimentos marítimos. Com ela os marinheiros portugueses dobraram o cabo da Boa Esperança, o mítico cabo das Tormentas, e abriram o caminho marítimo até ao Oriente.
Ostenta nas velas latinas o símbolo da Cruz de Cristo, em honra à Ordem de Cristo, da qual o Infante D. Henrique foi regedor e governador, e que teve a sua primeira sede em Castro Marim. No mastro principal, levará sempre as armas do Infante de Sagres.
Já a RTA também fez um pouco história. Em 2002, a caravela, tripulada por 22 marinheiros voluntários, levou José Hermano Saraiva e uma equipa da RTP a bordo para fazer a evocação dos acontecimentos históricos que estiveram na origem da tomada de Ceuta pelos portugueses, em 1415. Em 2004, Hermano Saraiva usaria de novo a Boa Esperança para filmar um episódio da série documental «A Alma e a Gente II», dedicado à expansão marítima portuguesa, com destaque para Gil Eanes que conseguiu ultrapassar o Cabo do Bojador.
Em novembro de 2007 foi um importante adereço no filme do realizador espanhol Antonio del Real, «La conjura de el Escorial», grande produção que remetia o espetador para a queda do rei D. Filipe II de Espanha e I de Portugal, cheio de lutas com espadachins, navegações em alto mar, amores, traições e muita política de bastidores.
Em maio de 2008, a Boa Esperança representou o Algarve na 61ª edição do Festival de Cannes, e ficou para a posteridade a visita dos atores Nicolau Breyner e Soraia Chaves, assim como as peripécias da viagem com o comandante José Gravata ao leme.
Em setembro de 2010 foi cenário da rodagem do filme «A Espada e a Rosa», a primeira longa-metragem de João Nicolau, produzida por Luis Urbano, cujo enredo contava a história de um jovem lisboeta que embarca numa caravela portuguesa do séc. XV governada pelas leis da pirataria.
Ainda nesse ano sofreu um acidente na chegada a Vigo, durante um périplo pela Galiza. Ficam também na memória dos algarvios os rumores, em 2012, em plena crise, que seria vendida a privados, e que também fizeram correr tinta e consternação, o que prova que, apesar de tudo, há carinho por aquele que representa um dos barcos mais emblemáticos da História de Portugal.
Mais recentemente, serviu para apresentar o então novo programa «365 Algarve» ao mercado espanhol, em setembro de 2016, numa viagem a Sevilha. Com a experiência, «percebemos que a infraestrutura do ponto de vista da navegação tem muitas fragilidades, a manutenção é caríssima e não temos recursos para a suportar, tal como acontece com muitas embarcações históricas por esse mundo fora», compara João Fernandes. «Felizmente temos este projeto com um volume significativo de investimento», em que a recuperação mais imediata deverá rondar os 90 mil euros.
Viagem épica a Londres
Entre maio e junho de 2002, a Caravela Boa Esperança participou numa viagem promocional do destino Algarve, de Lagos a Londres (ida e volta).
A expedição teve como responsáveis dois oficiais da Marinha, José de Castro Centeno (comandante) e Pereira da Costa (imediato).
Da tripulação fizeram parte pessoas dos mais diversos quadrantes de atividade.
A viagem apanhou um tremendo temporal na Biscaia, sofrendo a caravela vários danos que obrigaram a uma inadiável paragem para reparação.
Recuperação feita e retomado o percurso, o considerável atraso levou a que não houvesse sido cumprido o objetivo – chegar a londres em 10 de junho para ali comemorar o Dia de Portugal.
Ainda assim, a Boa Esperança entrou no Tamisa a 16 de junho de 2002, esteve atracada na capital britânica durante seis dias.
Aberta ao público no cais de Sta. Catarina, junto à Torre de Londres, foi muito visitada, não só por portugueses ali residentes, mas também pelo interesse e curiosidade de inúmeros cidadãos ingleses. O regresso aconteceu a 30 de junho.
Mesmo perante as enormes dificuldades que se lhe depararam, o esforço e sacrifício da sua tripulação que não desmereceu.
As várias fases do projeto «Exploraterra»
No âmbito da candidatura ao Programa Financiamento INTERREG VA Espanha – Portugal (POCTEP), designada como «Exploraterra», está prevista a recuperação da caravela, a criação do Centro Interpretativo e a criação de uma marca comum, com o objetivo de que estes venham a constituir uma marca integrada de alavancagem à promoção do território.
As atividades previstas durante a vigência do projeto são as seguintes:
- Definição do projeto e especificações técnicas para a preservação das embarcações;
- Desenvolvimento da construção ou reparação das embarcações históricas de acordo com os resultados da investigação efetuada;
- Apresentação das embarcações nos territórios participantes no projeto;
- Definição do conceito do produto cultural;
- Desenvolvimento do plano de marketing, produto turístico e marca do destino;
- Adaptação/ construção e equipamento de centros interpretativos – Lagos;
- Conceção da programação cultural e de promoção da digressão;
- Eventos de promoção turística e divulgação cultural;
- Promoção e difusão do projeto e dos resultados;
- Eventos de promoção e difusão do projeto e dos resultados.
Reparações a executar
A reparação da caravela consiste no seguinte: intervenção ao nível das madeiras e pintura. A reparação será realizada por fases e compreende o fornecimento dos seguintes serviços:
1) Fase I, qual inclui os materiais a aplicar:
- Lavagem geral
- Retirar caramujo;
- Escoramento;
- Lixar fundo;
- Lixar quilha e hélice.
b) Fase II
- Lixar escadas de acesso do castelo à popa;
- Lixar o costado e obras mortas a bombordo e estibordo por dentro e por fora;
- Lixar o castelo à popa;
- Lixar as canas do leme suplente e principal;
- Lixar as bancadas do convés;
- Lixar os alboios.
c) Fase III
- Lixar e reparar a bujarrona à popa
- Reparar a verga grande;
- Reparar o mastro da ré;
- Reparar o mastro da proa;
- Repuxar pregos e colocar rolhas no convés;
- Reparar as fissuras;
- Substituir tábua no convés à proa;
- Substituir tábua no cortado a estibordo à proa.
d) Fase IV
- Calafetar e amassar;
- Pintar as escadas de acesso do castelo à popa;
- Pintar o fundo;
- Pintar o costado e obras mortas a bombordo e estibordo por fora e por dentro;
- Pintar o castelo à popa;
- Pintar as canas de leme suplente e principal;
- Pintar as bancadas do convés;
- Pintar os alboios;
- Pintar a verga grande;
- Pintar o mastro da proa;
- Substituir os ânodos de zinco;
- Estadia da caravela.
- Repuxar pregos e colocar rolhas no convés;
- Reparar as fissuras;
- Substituir tábua no convés à proa;
- Substituir tábua no cortado a estibordo à proa.
–
Nota da direção – um agradecimento a Luís de Melo e Horta pela informação adicional acerca da viagem épica a Londres.