Cristina Veiga Pires, coordenadora científica, geóloga, investigadora do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) e professora universitária, traça um ponto de situação sobre o aspirante Geoparque Algarvensis. Próximo ponto na agenda é a apresentação de um livro dedicado ao Escarpão, em Albufeira.
barlavento: Em que fase está o projeto?
Cristina Veiga Pires: Estamos quase a formalizar a associação Algarvensis, que será, efetivamente, a entidade de gestão deste projeto. Para já, continuam a ser as três Câmaras a trabalhar individualmente, em conjunto com a Universidade do Algarve (UAlg), o que não funciona. Não há uma equipa dedicada a 100 por cento, porque tudo depende dos técnicos que estão nos diferentes departamentos das três autarquias. A boa notícia é que os estatutos da associação estão finalmente a ser aprovados nas reuniões de Câmara. Já há duas que aceitaram e o processo segue agora para Assembleia Municipal e tem de passar no conselho geral da UAlg para ir a Tribunal de Contas. A partir do momento que tenhamos a associação formada, passam a haver verbas para contratar pessoas. Espero por isso, porque a equipa perdeu um pouco o seu guideline porque é muito complicado funcionar assim.
Quem fará parte?
Os técnicos das três autarquias, membros da UAlg e haverá uma pessoa indispensável, um coordenador ou diretor executivo. Não serei eu, porque sou coordenadora científica e não farei parte da associação. Serei mais um eletrão livre a aconselhar quem está a trabalhar. Falta esta parte, porque neste momento não tenho ninguém a quem aconselhar a fazer as coisas.
O que mais faz falta?
O problema atual de não termos ainda uma entidade, faz com que continuemos a falar da parte de Silves, da parte de Albufeira e de Loulé. Quando queremos visitar um geossítio, temos que falar com a Câmara onde se insere, mas o território é único, apenas se estende a três concelhos diferentes. Um dos trabalhos com que nos temos debatido, é precisamente explicar que esses limites não existem na geologia, nem nos costumes. Por exemplo, o aquífero Querença-Silves atravessa toda a zona e as noras não são diferentes nem a história que está por trás. A cultura e o património natural é o mesmo e é nisso que nos queremos focar. Estamos a falar de uma área total de 1381 quilómetros quadrados (km2), três concelhos e 17 freguesias, que abrange museus, centros interpretativos e percursos pedestres. Na Internet já temos algumas referências de todo o território, mas falta-nos uma ligação mais marcada entre os diferentes temas, uma ligação mais focada na sustentabilidade e na relação com o território, e trabalhar com as pessoas da região e as que por cá passam. E há aqui um ponto muito importante que ainda não ficou bem assente. O limite do geoparque foi propositadamente escolhido não ir até ao litoral, à costa, embora do ponto de vista geológico exista muita coisa que se possa ver na costa, como as falésias. Mas a ideia é mesmo o desenvolvimento do interior do Algarve. A diferença entre o interior e o litoral é tão grande que, para termos um projeto bem organizado e consistente, decidimos focar só mesmo no interior e não ir até à linha de costa. No entanto, continuamos a falar de mar, porque o território do geoparque é quase todo mar. São rochas que se formaram nos oceanos ao longo do tempo e por isso é o outro mar do Algarve, é assim que o definimos.
Muita coisa já foi feita…
Sim, independentemente disso, há muita coisa que foi feita e que é preciso realçar. Para um projeto que não tem um coletivo dedicado a 100 por cento, já tivemos algumas atividades de relevo: a página web, a nossa presença na BTL, mas também do ponto de vista científico e educativo. Temos um Guia de Atividades Educativas a sair todos os anos, no qual são compiladas atividades e apresentadas num panfleto/guia do próprio aspirante a geoparque e não dependente de qualquer Câmara. Temos investigadores a trabalhar. Há este projeto do Planalto do Escarpão, que é um dos 10 geossítios que atualmente estão a ser divulgados. E, neste caso muito específico, já foi criado um novo percurso pedestre, o PR4, com placas interpretativas no local já colocadas e um story map online que permite acompanhar e ter mais informação. Além do facto de o percurso ser o resultado do estudo que foi feito para a produção do livro científico «Uma história com muitos milhões de anos. Do oceano Tethys ao barrocal do Algarve», pela professora Delmira Moura e a investigadora Sónia Oliveira, da UAlg, e um membro da equipa da Câmara Municipal de Albufeira, que será apresentado no dia 6 de outubro.
Já nasceram novos produtos?
A aldeia da Penina é um excelente exemplo. Criou um jornal da aldeia e uma festa anual, onde a dinamização da comunidade mostra os usos e as tradições de artesanato, que foi desencadeadora do Geopalcos do ano passado. Também houve um rapper que lançou uma música cuja a letra é relacionada com o Metopossaurus.
O evento é para repetir?
Tem periodicidade bienal. Está a ser preparada a edição de 2023.
Qual o objetivo?
Acho que o Geopalcos é um bom exemplo daquilo que se pretende: fazer atividades culturais em geossítios, com informação para a população. Temos ciência, arte, cultura, gastronomia e novos produtos. Tudo isto está baseado em algo que já existe, mas o objetivo é o desenvolvimento sustentável e por isso criar novos produtos de geoturismo, de economia circular. Há pouco tempo reuni com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para o plano de gestão da ribeira de Quarteira. Falou-se sobre quando as cabras vão pastar e que temos de recuperar o leite, mas depois os agricultores queixam-se que não tem saída. Na realidade, devíamos estar aqui para isso. Há leite a mais para os habitantes locais, mas não há suficiente para ser uma grande exploração. Bom, talvez dê para todo um geoturismo. Temos aldeias que têm Alojamento Local e que podiam usufruir desse leite e queijos. Acho que precisamos de encontrar um tamanho económico intermédio para conseguirmos a sustentabilidade local.
Isso está planeado acontecer para o futuro?
Enquanto não tivermos pessoas a trabalhar a 100 por cento nisto, é difícil, mas há já todo um trabalho das Câmaras Municipais, das Juntas e Uniões de Freguesia, que temos de alavancar um bocadinho.
O Geoparque tem chamado a atenção das entidades e do poder local?
Queremos ser, de alguma forma, para este território em que estamos a trabalhar, a ligação entre a comunidade e os organismos mais institucionais como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve e o ICNF, para conseguirmos ligar diferentes projetos de sustentabilidade.
E em relação aos geossítios?
Estamos a divulgar os dez principais. Na lista que estamos a trabalhar temos cerca de 45, todos com importâncias diferentes. Os geossítios podem ser de relevância internacional, únicos no mundo. É o caso do Metopossaurus. Até acho que já temos um outro fóssil dessa importância, mas ainda não há certeza.
Em que fase está a candidatura à UNESCO?
A candidatura obriga a que o geoparque esteja funcional, pelo menos, um ano antes de ser apresentado. Por isso, a futura associação terá que trabalhar durante um ano e só depois nos podemos candidatar. Espero que a associação esteja a funcionar no início de 2023. Por isso, se tudo correr bem, entre 2024 e 2025, teremos candidatura. Se virmos os percursos dos outros geoparques, quase todos levaram entre seis a 10 anos entre o momento em que se iniciou o processo e a apresentação da candidatura à UNESCO.
Quantos existem em Portugal?
Há vários. O último foi aprovado este ano, o da Estrela. No total são cinco geoparques: Açores, Naturtejo, Arouca, Terras de Cavaleiro e Estrela. Depois há três aspirantes: Viana do Castelo, Oeste e Algarvensis. Destes três, Oeste está pronto a apresentar a candidatura em novembro.
A Mina de Sal-gema da Campina de cima manifestou vontade de ser a sede do futuro Geoparque Algarvensis. Qual a sua opinião?
Isso já é uma parte política que não consigo responder. Mas terá de haver uma sede. Podem existir vários centros interpretativos, mas terá de haver uma sede para acolher a associação e a sua equipa. Há vários locais em discussão. Ainda sobre a Mina de Sal-gema, tivemos uma aluna que no âmbito de um Mestrado esteve a estudá-la e vai sair um story map. Será uma página web, onde conseguimos fazer a ligação entre o mapa, fotografias, história, animações e representação 3D. Esse trabalho está muito interessante porque apresenta todo o historial da mina, tem uma parte dedicada à geologia a explicar as rochas que ali se encontram, e ainda um mapa da cidade de Loulé que mostra onde estão as diferentes salas da mina, com a projeção da profundidade. Queremos algo deste género para todo o território do geoparque, para todos os passeios. Já temos duas teses de Mestrado relacionadas com a temática, uma das quais na área da Biologia Marinha, para reconstituir um pouco os paleoambientes marinhos do geoparque. Esta é a prova da abrangência de temáticas que este geoparque possui. Já tivemos também os alunos de Arquitetura Paisagista a propor novos percursos de visita e conceitos de museologia dos próprios geossítios. Estamos a trabalhar de forma um pouco avulsa e dispersa, mas há efetivamente trabalhos académicos a serem desenvolvidos.
Poderemos vir a ter um Centro Interpretativo Algarvensis?
Penso que a futura sede deveria ter um centro interpretativo associado. Atualmente há uma exposição sobre o Metopossaurus no Posto de Turismo de Salir. Portanto, já foi feito de raiz, embora pontual no local, porque não há infraestruturas ligadas. Independentemente de quantos, onde e como, haverá sempre embaixadores do nosso território. Pode ser um centro interpretativo, como pode ser uma casa, ou um restaurante que tenha um posto. A ideia do embaixador é ter mesmo pessoas locais que façam essa ligação, que pode ser com alguma coisa física no espaço, ou não. Depois temos também de fazer alguma coisa em relação ao geossítio do Metopossaurus algarvensis. Talvez uma musealização do ponto onde foi encontrado. Atualmente, temos o esqueleto do fóssil no Museu Municipal de Loulé, mas no local não se consegue ver nada. Precisamos de ter uma infraestrutura pensada para conservação do sítio e para a divulgação.
A ideia de geoparque já atrai turistas?
Os presidentes das Juntas de Freguesia estão muito empenhados, sem dúvida, porque é uma parte interior e tinham a impressão, até agora, de terem sido esquecidos de alguma forma neste âmbito do turismo e tudo o que daí advém. Embora a população e os empreendedores ainda precisem de perceber que o que se pretende não é um projeto para o turismo de massas. Tem de haver regras e um enquadramento não legislativo, porque um geoparque não traz nenhuma legislação. Traz sim sensibilização e enquadramento, e aí temos exemplos mais marcantes em Paderne e na Penina. Ainda não temos essa análise feita, nem números, a não ser no PR4 que há lá um contador de pessoas e temos vindo a observar um aumento gradual. Foi um percurso criado antes do verão, mas também tem havido visitas guiadas aos percursos onde no final há um inquérito aos participantes. Esse inquérito é sobre o percurso e a paisagem, mas também sobre se as pessoas ao virem fazê-lo, visitam as aldeias, vão lá almoçar e compram lembranças. A maior parte responde que sim e isso é muito positivo. Obviamente que nos falta valorizar os percursos locais e fazer todo esse marketing e valorização, embora já existam projetos para isso.
Quais?
Obviamente que o Algarvensis não pode fazer tudo, mas tem esse objetivo de fazer essa ligação e promover essas atividades. Por exemplo, fazer uma formação a guias turísticos de respeito e informação. Isso faz tudo parte dos planos. Também a ideia de ter uma marca. Nos outros geoparques nacionais e internacionais é o que se chama geogood, uma marca de selo de qualidade e sustentabilidade para alguns produtos da gastronomia, por exemplo. Isso tudo acho que faz diferença. Por exemplo, no Centro de Ciência Viva do Algarve fizemos um telhado com canas. As canas são um verdadeiro problema e uma das ideias do Algarvensis é fomentar investigação sobre a recuperação dessas canas, para uma economia local e circular, e para que se possa dizer às pessoas que têm os terrenos, que se arrancarem as canas, têm alguma coisa em troca, algum retorno.
E que mais tem no prelo?
Estamos a participar a nível nacional num Biénio para a ação climática nos geoparques. Teremos atividades para todas as idades nos vários espaços: workshops, caminhadas, conferências e está todo um programa previsto para os diferentes geoparques se apresentarem, incluindo os aspirantes. Temos feito parcerias com a Ciência Viva no Verão com o território, através de percursos pedestres, observações astronómicas, e estamos em outros projetos paralelos que ainda não estão bem fechados. Vamos também participar no SEIVA – Semana de Educação e Iniciativas de Voluntariado Ambiental, com atividades no Cerro do Ouro, em Albufeira.
Como vê este projeto daqui a dez anos?
Já não será aspirante. Tenho de admitir que nestes últimos tempos, por exemplo no último Geopalcos, achei maravilhoso ouvir as pessoas, os artistas, os músicos e os autarcas a falarem sobre termos como oceano Thetys, geomorfologia ou, Metopossaurus algarvensis. Ou seja, palavras que por norma são de um âmbito muito restrito, a serem ditas por pessoas comuns, mas convictas a perceberem e interessadas pelo assunto. Daqui a 10 anos, espero que a maior parte das pessoas que vivem aqui, sintam esta pertença e conheçam o território para sermos todos embaixadores do que mais bonito e mais importante temos.
«Uma história com muitos milhões de anos» ficará disponível online
O livro «Uma história com muitos milhões de anos – do oceano Tethys ao barrocal do Algarve», da autoria de Delmira Moura e Sónia Oliveira, investigadoras do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve, contou com a colaboração na pesquisa de campo de Luís Pereira, coordenador no município de Albufeira pela candidatura do território Algarvensis a Geoparque Mundial UNESCO. Foram revisores científicos Cristina Veiga-Pires, coordenadora científica do aspirante Geoparque Algarvensis e Nuno Pimentel, coordenador científico do aspiring Geoparque Oeste que também escreveu o prefácio.
A obra conta a história geológica do Planalto do Escarpão e regiões envolventes, agora um dos 10 principais geossítios a integrarem a candidatura do aspirante a Geoparque Algarvensis à Rede Mundial de Geoparques da UNESCO, mas que, em simultâneo, evidencia a história geológica da bacia do Algarve nascida há milhões de anos no Oceano Tethys. A interpretação da paisagem tal como presentemente a percecionamos não ficou esquecida e contribuirá para olhares mais atentos do Barrocal do Algarve.
«É um livro que tem informação científica, alguma nova, com apresentação de locais no Escarpão, mas é sobretudo dedicado à divulgação da geologia. É focado no planalto do Escarpão. Tem uma introdução genérica sobre o que é a história da geologia, como estudamos e convida a descobrir o percurso pedestre PR4. Foi uma encomenda da Câmara Municipal de Albufeira. Não tendo o geoparque financiamento próprio ainda, a edição passou para o município, porque se trata de um dos seus geossítios. Em breve estará disponível online», diz Cristina Veiga Pires.
No princípio era um fóssil
Tudo começou com a proposta de um investigador, Otávio Mateus, que estava a trabalhar numa descoberta, uma salamandra gigante, denominada Metopossaurus algarvensis. «Sendo uma espécie descoberta no Algarve, foi a primeira vez a ser descrita e, por enquanto, só se conhece aqui esse fóssil. Viveu num momento muito particular da história geológica, a que chamamos de Treásico (há 255 milhões de anos) e que tem a ver com o início de um novo capítulo da geologia aqui da região, que é o início de uma bacia oceânica», recorda Cristina Veiga Pires, coordenadora científica do aspirante Geoparque Algarvensis.
O fóssil foi descoberto no sopé da Rocha da Pena, perto da Penina, em Salir.
A partir daí surgiu a ideia de se juntar «um território homogéneo em termos da geologia», capaz de ver reconhecido «um local geológico único a nível mundial». Agora, «temos de apresentar uma candidatura para poder ter esse selo de qualidade e trata-se de um selo baseado na geologia e na interação da geologia e da paisagem com a população e a comunidade. É muito importante ter esta noção. Não se trata de um parque de atrações. É um selo de qualidade que está baseado na sustentabilidade e nessa relação entre a paisagem, a geologia e tudo o que conseguimos retirar dela. Quando digo retirar, é porque muitos dos usos e costumes da região e do território, estão diretamente ligados à geologia: as noras, por causa dos aquíferos, o tipo de cultivo em cada tipo de solo. Portanto, tudo o que se desenvolve numa paisagem, tem por base a geologia e é essa a ideia na génese dos geoparques mundiais».