Projeto do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve (UAlg) revisita o pré-histórico concheiro do Castelejo em Vila do Bispo.
À primeira vista parece apenas uma parede cimentada. Um bloco cinzento onde se acumulam várias camadas de conchas. Mexilhões, lapas, búzios e burriés que foram depositados no mesmo local ao longo de milénios e que agora, graças às novas técnicas e metodologias de estudo, podem ter muito a dizer aos arqueólogos.
Carlos Duarte Simões, investigador do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve (UAlg), empreendeu uma escavação arqueológica no sítio do Castelejo, em Vila do Bispo, entre 18 e 29 de outubro, no âmbito do projeto SEArch, para investigar a exploração dos recursos costeiros na transição do Mesolítico para o Neolítico.
«O nosso objetivo é tentar perceber melhor a ocupação pré-histórica nas zonas costeiras, sobretudo no momento em que as sociedades passaram de caçadores/recoletores nómadas a agricultores sedentarizados. Estamos a tentar compreender como é que esse processo aconteceu e de que forma os recursos marinhos foram importantes», explicou.
Junto à Praia do Castelejo existe um concheiro [jazida pré-histórica de conchas de moluscos, constituídos por restos de alimentação humana] que nos anos 1980 foi escavado por uma equipa do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS).
Na altura, «apareceram restos de fogueiras e de estruturas que se podem reconhecer como sendo de habitações temporárias. Estamos a falar entre 8000 a 6000 anos. Estavam intercaladas com os níveis de conchas marinhas que são o que nos traz a esta campanha em concreto», explicou.
«Sabíamos que este é um sítio com muito potencial e portanto, resolvemos revisitá-lo para recuperar os perfis do concheiro e analisá-lo de acordo com as novas metodologias que a arqueologia hoje tem disponíveis e que na altura não eram tão aplicadas, para tentar afinar as interpretações sobre o que sabemos acerca destas comunidades», detalhou.
Patrícia Monteiro, da Direção-Geral do Património Cultural, e corresponsável pela escavação, já tinha feito este tipo de trabalho no sítio arqueológico dos Concheiros de Muge, em Salvaterra de Magos, um local especial para a arqueologia portuguesa, e onde Nuno Bicho, professor, arqueólogo, investigador e atual diretor do ICArEHB, encontrou, identificou e escavou uma sepultura de uma mulher, em 2011.
«Neste tipo de concheiros, sobretudo no Mesolítico, que começaram a acumular-se ao longo de toda a costa e nas zonas de estuário há 8000 anos, acontece também encontrarmos muitas vezes enterramentos humanos. Aquelas populações enterravam os seus mortos dentro do concheiro. Portanto, a interpretação de que seriam apenas simples lixeiras pode não ser bem assim e dá-nos que pensar», acrescentou Carlos Duarte Simões.
«O trabalho em concheiros tem sido uma linha de investigação do ICArEHB desde sempre porque é um tema relevante na evolução da nossa espécie e da nossa sociedade. Este é um dos maiores concheiros que se conhece em toda a Costa Sudoeste e Vicentina com uma área de quase 3000 metros quadrados», estimou.
Mas «cada vez que terminamos uma campanha, saímos sempre com mais perguntas do que respostas. Por isso, muitos dos resultados vão surgir mais tarde. Recolhemos tudo, até a areia que envolve as conchas. Vamos analisar as camadas ao nível microscópico para perceber se há diferenças nos modos de vida que podem ser revelados por análises muito específicas, muito concretas, ao nível da geologia, da biologia e da química», detalhou.
Patrícia Monteiro, que também é responsável pela arqueobotânica, prevê que «as surpresas apareçam a posteriori» e poderá haver um momento «uau» no laboratório.
«Ou seja vamos recuperar coisas não visíveis a olho nu durante o processamento. Por exemplo, através da flutuação de sedimentos (uma espécie de crivagem com água), conseguimos recuperar restos microscópicos de vegetais que possam existir», um trabalho que será feito na UAlg, numa primeira fase, e depois no Laboratório de Arqueociências (LARC) da Direção Geral do Património Cultural, em Lisboa.
Nesta escavação, os arqueólogos desinfetam as mãos e envolvem as amostras recolhidas de maneira minimalista, quase cirúrgica, em papel de alumínio, um procedimento para evitar a contaminação.
«Isto porque vamos estudar a quantidade de lípidos, as gorduras que ficam na matéria orgânica que aqui foi processada» e que ainda é possível balizar ao fim de vários milénios, explicou Monteiro.
«Poderemos analisar o consumo de algas e plantas marinhas, por exemplo. Eram um recurso disponível e podem ter sido utilizadas como fertilizante».
Segundo o arqueólogo, «à partida, tudo indica que este sítio foi intensamente ocupado ao longo de milénios. Estas populações estavam constantemente a regressar ao mesmo local», que no passado, teria uma topografia muito semelhante à atual. Um vale abrigado da nortada e próximo da costa que satisfazia as necessidades de comida e abrigo.
«Estamos a falar de pessoas, de marcas da ação humana organizada e também de uma atividade que ainda hoje é importante nesta zona, o marisqueiro. Estas populações, até quando mais tarde já exerciam a agricultura e a pastorícia, continuavam a ter uma grande ligação ao mar. Acaba por ser interessante essa ligação no espaço e no tempo aqui no concelho de Vila do Bispo», acrescentou Patrícia Monteiro.
«Sim. Tratam-se de populações que já eram a nossa espécie e que através de um processo que estamos a tentar perceber, a dada altura tornam-se sedentárias. Isso é um passo fundamental para a criação de sociedades organizadas, com uma estrutura», tal como as conhecemos hoje, concluiu Carlos Duarte Simões.
Conservação e interpretação
Agora, quase três décadas depois da última campanha, os arqueólogos encontraram o sítio da Praia do Castelejo erodido pelas chuvas e coberto de canas e vegetação. «Tivemos todo o apoio do município de Vila do Bispo e também da direção do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) na desmatação e acesso ao local», sublinhou Carlos Duarte Simões.
«Para nós, a conservação destes sítios para usufruto público é sempre um dilema. Houve interesse por parte do PNSACV em colocar aqui algum material informativo e, em princípio, possibilitar a visita. O que há para ver são cortes estratigráficos. Vemos carvão, pedra lascada, cerâmica, que nos indica uma acumulação antrópica ao longo de milénios. É a prova inequívoca que isto não é uma coisa natural», embora possa ser difícil de interpretar pelo público.
Na opinião dos arqueólogos, o concheiro tem, contudo, todo o potencial para ser dinamizado pelos Centros de Ciência Viva da região.
«É um sítio antigo, começa mesmo no final do Paleolítico, há uns 9000 anos e vai até às primeiras populações já neolitizadas, que em princípio são populações que vieram de fora, isto é, que se expandiram através do Mediterrâneo, já há 6000 anos», teorizou Carlos Duarte Simões.
À medida que as camadas do concheiro se vão alterando, «pode significar, por exemplo, períodos de abandono, em que o sítio não estava habitado ou até alguma sazonalidade».
A verdade é que «estas conchas de zona marítima não vieram para aqui sozinhas. No Mesolítico, a exploração destes recursos intensifica-se pelas últimas populações ainda nómadas. Reuniam-se e viviam por aqui. Eram populações muito móveis e andavam pelo território onde exploravam outros recursos. Por exemplo, pedra para lascar e para fazer ferramentas». Um paralelo pode ser traçado com o sítio da Gafaria, em Lagos, embora mais tardio, do Neolítico médio, onde havia o que se pensa ter sido uma oficina de pedra lascada.
No âmbito deste projeto, «também recolhemos amostras no sítio da Armação Nova/ Rocha das Gaivotas, num concheiro muito menos denso, a cerca de um quilómetro do Farol do Cabo de São Vicente», no final de setembro.
Nestas escavações trabalhou uma equipa permanente de quatro pessoas e foram feitas, nalguns locais onde o terreno é mais regular, passagens de georadar «para fazer um radiografia ao subsolo».
No próximo ano, os resultados são publicados na forma de artigos científicos.
«Será montar uma história para contar à comunidade académica e científica, mas também ao público», concluiu o investigador. A iniciativa conta com financiamento do Horizonte 2020 da União Europeia.
Algoritmo de Inteligência artificial vai prever novos sítios arqueológicos
Um drone invulgar fez vários voos sobre o sítio arqueológico da Praia do Castelejo durante a reportagem do barlavento, na tarde de quinta-feira, 28 de outubro.
Segundo a arqueóloga Rita Dias, tratou-se de uma recolha de dados no âmbito do projeto Odyssey – Platform for Automated Sensing in Archaeology, que junta a empresa ERA Arqueologia, a Universidade de Aveiro e a Universidade da Maia. Este projeto, com duração até 2023, irá recorrer a técnicas de tratamento de imagem e de inteligência artificial para detectar sítios arqueológicos a partir de dados de diferentes fontes. O objetivo é automatizar e complementar o trabalho humano para melhorar resultados.
«Ou seja, é um projeto de deteção remota com machine learning, no âmbito do qual aproveitamos para recolher dados em projetos de investigação já existentes, para, no fundo, alimentar o algoritmo e ao mesmo tempo ajudar quem está no terreno. É uma simbiose», acrescentou.
«Hoje voámos com um aparelho de ortofotografia georreferenciada e com um aparelho de LIDAR (Light Detection And Ranging). Eventualmente, voltaremos com uma câmara multiespectral», descreveu Rita Dias.
O LIDAR, «no fundo, é um equipamento que envia sinais de laser para o terreno com o objetivo de se fazer um modelo tridimensional, com a possibilidade de se retirar a vegetação, entre outras camadas, de forma a podermos analisar» e, neste caso, prever, a possibilidade de haver vestígios arqueológicos que de outra forma não seriam possíveis de encontrar.
«Já temos feito alguns levantamentos no Algarve e vamos continuar no norte e centro do país. No fundo, vamos ter dados recolhidos em vários sítios arqueológicos que nos vão permitir alimentar o algoritmo. Numa fase seguinte, teremos de comprovar os resultados».
Para Patrícia Monteiro, arqueóloga da Direção-Geral do Património Cultural, e diretora da escavação no sítio do Castelejo, «o levantamento do drone será muito útil nesta zona, quer pela sua topografia quer por estar em linha de costa. No fundo, o que o LIDAR faz é uma leitura do terreno removendo a vegetação que é um dos elementos que afeta mais a visibilidade de sítios arqueológicos».
No local, a vegetação é sobretudo arbustiva e o dispositivo poderá ajudar. «Ainda temos muitas perguntas e penso que poderá vir a ser interessante voltar cá, incidir sobre outros locais ou aprofundar os mesmos».
Este projeto de Investigação & Inovação (I&I) conta com financiamento de 412 mil euros por parte do Programa Horizonte 2020 (H2020).
ICArEHB na senda das origens da Humanidade
«Temos um tópico muito específico que é a evolução humana na Pré-história. Parece uma coisa muito pequena, mas na realidade é cerca de 90 por cento de todo o nosso tempo. E portanto, temos uma série de projetos de investigação em Portugal e em África, que é aquele berço da humanidade em vários tempos», explicou ao barlavento a geoarqueóloga Vera Aldeias, que faz parte da direção do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano (ICArEHB) da Universidade do Algarve (UAlg). «Trabalho muito a questão dos últimos Neandertais e a chegada da nossa espécie à Europa, em Israel, na Bulgária e em França. Ou seja, temos uma ação alargada por vários temas».
Em relação ao concheiro da Praia do Castelejo, «é importante porque, além de termos conseguido um projeto que é muito competitivo em termos internacionais [Marie Curie], mas também porque é local, para percebermos na nossa história. Neste caso, numa altura de transição: quando é que as populações que aqui estavam começam a ser sedentárias e como é que se adaptam? Este tipo de sítios são cruciais» para obter as respostas. A Costa Vicentina está pontilhada por concheiros que se alargam para norte.
«Uma coisa boa da pandemia é que nos virámos mais para o digital. Temos organizado workshops não-presenciais para a população e também dirigidos à comunidade científica, mas quem tiver interesse pode participar. Temos várias dessas iniciativas como o ICArEHB dialogues que teve muito sucesso e que é para continuar. O tópico provisório para o novo ciclo terá a ver com os ciclos das migrações».