É o mar do Algarve que abre o caminho para temas como a geografia, a história, a antropologia, a sociologia e a gastronomia, num livro onde a fotografia convive com «uma linguagem popular e vários termos ligados às atividades marítimas, numa vivência muito cénica que nos permite estar a ouvir os protagonistas como se fosse em primeira mão». Foi assim que Fernando Cabrita, advogado, poeta e conhecido escritor de Olhão apresentou a obra «Vidas e Vozes do Mar e do Peixe», na terça-feira, 11 de dezembro, na Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve, em Faro, perante uma plateia cheia.
«Pela primeira vez encontro um livro que nos fala do modo complexo mas simples, de todas estas atividades, pela voz das pessoas que as praticam, desde Sagres à Fuzeta. É uma peça de arte. Basta folheá-lo para se perceber a qualidade enquanto peça gráfica e artística e pelo conteúdo literário», elogiou.
Na opinião de Fernando Cabrita este é «um manual de complexa simplicidade. Conforme avançava na leitura, fui imaginando estes algarvios que representam a terra e o mar ao mesmo tempo, são quase velhos Ulisses, como os que carpinteiravam a sua casa, o barco, os arados e as cercas, e que depois se punham ao mar. E tudo isto escrito na primeira pessoa. A linguagem não é apenas a que transcreve, mas a que é vivida. É a memória daqueles que viveram o momento», reforçou.
Este trabalho tem a sua génese no premiado (e esgotado) «Algarve Mediterrânico: tradição, produtos e cozinhas», editado pela Tinta-da-china, também coordenado por Maria Manuel Valagão em coautoria com o fotógrafo algarvio Vasco Célio e o chef Bertílio Gomes.
Foi durante o processo de elaboração dessa obra que se tornou urgente a necessidade de aprofundar os contextos da vida no mar, sobretudo através das vozes na primeira pessoa, bem como as características dos peixes e dos seus habitats.
«A decisão de não adiar mais este trabalho foi potenciada por alguns acontecimentos, como o desaparecimento de Dâmaso do Nascimento com quem tínhamos agendado uma conversa sobre a conservação tradicional dos produtos derivados do atum. Ora, Dâmaso seria talvez o último guardião vivo destas práticas o que reforçou a consciência de que é urgente recolher as memórias e fixá-las», recordou Maria Valagão. «Comecei por perceber se esta área agradava ao Vasco Célio, que abraçou a ideia com muito entusiasmo pois já tinha iniciado em tempos uma recolha sobre tempestades e mar revolto. A partir daí convidei a professora Nídia Braz, da Universidade do Algarve e foi assim que constituí o trio de autores que forma este livro», contou ao «barlavento».
Já Vasco Célio, explicou que importância deste livro prende-se com a «preservação da memória e cultura desta região. Sinto que este é mais um dos meus contributos. Espero que mesmo daqui a 100 anos, graças a esta obra, alguém se lembre do que era ser pescador no Algarve».
O texto compila «dezenas de testemunhos de várias gerações. Faltava salvaguardar esta memória e identidade que se vai perder, sobre a realidade atual do que é a paisagem marítima do Algarve. A nossa dependência do mar e dos seus recursos, e a forma como ele nos influencia», sublinhou Vasco Célio.
Uma componente original são «as receitas da gastronomia regional, elaboradas de acordo com a memória das pessoas que entrevistámos». Nídia Braz fez uma intervenção curta mas muito emotiva, destacando a «gratidão e alegria por ter conseguido lançar o livro» e agradecendo a «todas as pessoas que nos deixaram gravar a sua voz em conversas demoradas e trabalhosas para conseguirmos testemunhos reais, vividos na primeira pessoa». E concluiu, referindo a influência que o seu pai teve na elaboração deste livro.
«Durante toda a sua vida o meu pai editou e publicou na imprensa, regional e nacional, mas não teve tempo para publicar todos os livros que tinha na cabeça. Então, é uma grande alegria para mim, estar aqui hoje, e poder dizer que publiquei por mim e por ele. Nesta estima que tenho pelo mar e pela terra, existe muito dele».
Uma das histórias que mais marcou Vasco Célio foi a do mítico pescador «Zé Cinzento», de Sagres. «Já não está no ativo, mas é amplamente conhecido por todos os pescadores daquela zona. Todos conhecem uma história em que durante vários dias consecutivos de nevoeiro, em que ninguém via nada, e por isso, ninguém ia ao mar, ele pegava no barco, ia e vinha, e ainda trazia peixe! O Zé Cinzento tem uma aura de herói. Poder conhecê-lo, olhá-lo nos olhos e sentir a sua energia, foi algo fabuloso. É uma lenda viva», reforçou o fotógrafo.
No início da sessão de apresentação Maria Valagão destacou a importância da memória em 2018 que agora finda e que foi o Ano Europeu do Património Cultural. «A memória é frágil e efémera. Tem que ser captada enquanto os seus atores estão em vida, porque ela finda e foi o que aconteceu durante o processo. Duas das pessoas mais destacadas em toda a narrativa, o Mestre Francisco Faleiro da Fuzeta e o Ti João Andorinha de Vila Nova de Cacela, deixaram-nos na primavera. O livro não é só um tributo às suas memórias, é também um contributo para que estes patrimónios não se desvaneçam, dando-lhes assim continuidade», disse.
A autora terminou lembrando «a singularidade destes homens que vivem em permanente intimidade com os elementos da natureza: a água do mar, essa entidade que nos forma e donde vimos, o vento, o sol, a lua…intimidade essa que talvez forje uma espécie à parte. E é realmente uma pena que muitas pessoas, sobretudo das gerações mais novas, não façam ideia da forma como a identidade algarvia está associada a estas fainas, da pesca do bacalhau e do atum!», frisou.
A apresentação na Escola de Hotelaria do Algarve, em Faro, onde estiveram cerca de 200 pessoas, acabou com pescadores e famílias presentes testemunhando o orgulho de terem participado nesta obra.