Alexandra Rodrigues Gonçalves defende uma «reconfiguração» do modelo de desenvolvimento regional, com base na inovação, cruzamento de conhecimento e à luz da Dieta Mediterrânica.
O Fórum para a Competitividade prevê que, em Portugal, o turismo não será suficiente para travar a desaceleração da economia, tendo em conta os indicadores disponíveis no terceiro trimestre do ano.
Numa altura em que a época alta termina, este é também tempo para refletir. Alexandra Rodrigues Gonçalves, docente e diretora da Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo (ESGHT) da Universidade do Algarve (UAlg) e investigadora integrada do Centro de Investigação em Turismo, Sustentabilidade e Bem-Estar (CinTurs), defende uma abordagem à qual chama «Mar Novo», tal como o poema da Sofia de Mello Breyner.
«É uma vontade, uma ambição de que este nosso território se reconfigure, porque o modelo de desenvolvimento que tem sido prosseguido, deixou para trás as nossas atividades primárias no caminho para uma indústria de serviços. E caminhou para uma centralidade, não apenas costeira, mas também de concentração em poucas atividades. Agora, tem de ser feito de outra forma», aponta.
«Ainda há muito a ideia de que o turista é massificado. Vem em grandes quantidades e quer apenas sol e praia. Hoje, os estudos demonstram que o turista procura outras coisas. A motivação secundária, ou melhor, a segunda motivação mais identificada nos questionários que temos tido em curso, apresentam a cultura em segundo lugar. E já com resultados muito próximos da procura pelo sol e praia. Há hoje, de facto, um turista que já procura atividades culturais. E não são atividades de performance», detalha a docente, que foi também diretora regional de cultura do Algarve entre 2013 e 2018.
«Esta é uma tendência do início do século XXI. As pessoas querem interagir com a comunidade local. Querem conhecer as suas tradições. Querem fazer o seu próprio souvenir ou a lembrança que levam para casa quando regressam de férias. Querem participar em diálogos, em conversas com as pessoas da terra que visitam, com quem faz parte do ADN local e a autenticidade é muito valorizada. Também por isso, não podemos copiar o que os outros destinos oferecem e temos de diferenciar a nossa oferta».
Neste aspeto, Alexandra Gonçalves tem-se dedicado ao desenvolvimento do chamado turismo criativo. Coordenou a equipa algarvia que escreveu um dos quatro capítulos do livro «CREATOUR: Catalisando o turismo criativo em cidades de pequena dimensão e em áreas rurais», apresentado em abril, um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).
«Não é para as massas, de certeza. É um nicho dentro do turismo cultural. Mas é um nicho importante porque contribui para o desenvolvimento local. Faz um encontro entre as comunidades e a sustentabilidade das suas economias. Acontece, em regra, em sítios fora dos centros urbanos, no interior, ou em zonas periurbanas e vende-se como uma proposta de intercâmbio. Transmite, preserva e protege o conhecimento porque tem associado os artesãos que vão transmitir a outros aquilo que sabem. E por isso, consubstancia um conjunto de benefícios maiores que em muitos outros tipos de turismo», explica.
«Um turista é sobretudo um visitante, alguém que quer conhecer o lugar e as práticas culturais. É claro que se puder adquirir bens associados a atividades locais ou ao artesanato, há um valor económico que se acresce ao valor de consumo tradicional».
Questionada sobre quem deve dinamizar este segmento, os privados ou municípios, a docente responde que há oportunidades para ambos. «Não sou fundamentalista em optar por um único caminho. O Loulé Criativo é um exemplo internacional. É uma boa prática. Começou aos poucos, quase com caráter experimental, e foi garantindo os espaços e as infraestruturas aos artesãos, como o Palácio Gama Lobo. Foi ganhando força e tem vindo a fazer todo um trabalho de apoio e suporte a certos ofícios que, se calhar, já teriam desaparecido, como é o caso da oficina de caldeireiros. Por outro lado, tem vindo a promover a renovação das artes e ofícios, através do cruzamento com o design, introduzindo modernidade e aumentando o valor percebido. Ou seja, há todo um ecossistema criado porque isto não vive apenas de vender ao turista aquilo que se faz. O marketing e a divulgação são fundamentais e é onde mais falhamos».
Ainda assim, no caso dos municípios, «cada um tem de ver o que existe no seu território para poder desenvolver as suas ofertas de turismo criativo». No Algarve, quando «desenvolvemos o CREATOUR, houve muitas propostas de relação entre gastronomia e as oficinas tradicionais, criando uma ideia que depois viria a ser desenvolvida no projeto Algarve Craft & Food», dinamizado em parceria pela Região de Turismo do Algarve, pela Tertúlia Algarvia e pela Cooperativa QRER.
«Este recente foco veio também ajudar a qualificar a gastronomia da região. Alguns concelhos já tinham falta de pratos tradicionais. As cartas das ementas eram todas iguais na maioria dos restaurantes à beira-mar. Felizmente, começámos a reintroduzir a nossa gastronomia. Isto tem também a ver com a Dieta Mediterrânica e com uma identidade muito nossa, que é o estar em espaços comuns, partilhar, conviver. Se a experiência à mesa for boa, vai ser transmitida e repetida» por quem nos visita.
Agenda única para a região
«Um dos aspetos que tem vindo a ser colocado no mapeamento de necessidade de investimento é a criação de uma agenda regional baseada nos novos conceitos de smart destination, digital, e de comunicação fácil e em tempo real: estou aqui agora e quero ver o que está a acontecer à minha volta», aponta a docente. «Mas não existe. Aliás, a falta de uma agenda coordenada de programação cultural na região é uma lacuna que identificámos em tese de mestrado em 2002» e que continua por solucionar.
«O território não é assim tão extenso. Mas isto não significa que não haja acontecimentos em vários sítios ao mesmo tempo. Porque, pelo menos, durante os meses de verão temos cá pessoas suficientes para frequentar muitos e variados eventos. Concordo que haja, em simultâneo, várias coisas a acontecer. Claro que isso não fará sentido durante a época baixa, quando temos poucos consumidores para estas propostas. Os residentes, por si, não chegam» para assegurar público. «Defendo que deve haver uma coordenação maior» atenta aos fluxos turísticos e à sazonalidade.
E a quem caberá a responsabilidade de gerir a informação e manter uma plataforma de agenda atualizada?
«Penso que é uma decisão que terá de ser feita através da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve em conjunto com a Direção Regional de Cultura do Algarve e o Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), integrando também o Turismo do Algarve, mas sem esse objetivo exclusivo. A diversidade de propostas de programação não passa apenas pela cultura. Há muito mais. Talvez uma comissão regional deva ser a entidade a privilegiar na gestão da informação e em manter a agenda viva e atual. Hoje já se faz isso de forma bastante inteligente noutros territórios, com plataformas integradoras. Por exemplo, embora noutra escala, Barcelona faz isso muito bem», exemplifica.
365 Algarve trouxe «modernidade»
Na opinião da diretora da ESGHT, turismo e cultura devem trabalhar em parceria para a qualificação do território. O fim do programa 365 Algarve, que casou ambos, deixou (e deixa) uma lacuna em aberto.
«O 365 Algarve estava a trazer inovação. Fez um cruzamento daquilo que é nosso com uma renovação artística. Ou seja, tínhamos uma combinação entre os agentes do território, as pessoas comuns, as nossas tradições e o desenvolvimento de novas propostas culturais. Isso acontece quando há investimento. Quando esse investimento desaparece, dificilmente se sustentam essas propostas de programação porque sabemos que os públicos que temos, por si só, não garantem o retorno do investimento. Portanto, tem de haver financiamento. Esse programa regional é fundamental, sobretudo fora das épocas altas em que todos programam e fazem eventos. Nas outras alturas do ano precisamos de ter um efeito de animação permanente que vai muito além do entretenimento. É um efeito catalisador para a fixação de agentes culturais no território, de renovação das práticas artísticas, de atração de novos talentos e de criatividade para novos projetos. É essencial para várias dimensões, sobretudo numa dimensão social», considera.
Mais interdisciplinaridade e interesse académico pelo Algarve
Pode parecer um paradoxo, mas «o corpo de conhecimento do turismo resulta do conhecimento de todas as outras áreas», diz Alexandra Gonçalves.
«E por isso é tão importante que haja cruzamentos disciplinares. Não pensarmos que o turismo apenas fala para o turismo, ou que a gastronomia fala apenas para a cozinha, ou que a cultura fala para a cultura. É preciso cruzar tudo isso com as ciências e as engenharias». Na prática, «os investigadores, em termos de académicos, tendem a investigar as áreas que mais lhes interessam e vão enveredando por interesses mais pessoais ou por domínios de menor aplicação. Há falta de massa crítica e de financiamento para conseguir ser mais abrangente na investigação desenvolvida. Falta também quem desenvolva temas de interesse do Algarve, que faça tratamento e investigação de arquivos, e que faça trabalho de sapa».
Os estudos no que toca a temas algarvios são pontuais e, por vezes, não conseguem ter continuidade por falta de meios.
«Para fundamentarmos, por exemplo, candidaturas à UNESCO, tem de haver investigação que tenha por base documentação, factos palpáveis, bens materiais e investigação comprovada. No Algarve temos um mosaico de diversidade, pequenas coisas que são interessantes que ainda nos permitem ter um bem-estar e fruir» e que valerá a pena estudar com vista à preservação.
Há, contudo, «dificuldade na criação de equipas multidisciplinares, em encontrar-se um espaço comum. Temos uma competitividade demasiado individualizada. Talvez uma perspetiva de regionalização possa melhorar esta forma de estar», no sentido de um trabalho em rede mais forte e mais profícuo, no que al Algarve diz respeito.
Um exemplo de boa prática é o recém-criado Host Lab que tem por objetivo desenvolver ingredientes inovadores no âmbito da Dieta Mediterrânica. É financiado pelo Programa Operacional para o Algarve 2020 e conta com a participação do Instituto Superior de Engenharia (ISE) da UAlg.
«Estamos a cruzar o conhecimento de quem desenvolve produtos alimentares de inovação. As investigadoras estão a desenvolver petiscos que tenham na base elementos da Dieta Mediterrânica. Isto também é cultura, tentarmos usar os recursos endógenos e aquilo que está na base do nosso território para tentarmos criar», sublinha a responsável. Neste momento estão a ser concluídos um conjunto de novos produtos a testar na 12ª Rota do Petisco que arranca dia 14 de setembro.
E falta esse lado criativo à Dieta Mediterrânica? «A dificuldade é mais sobre o conceito. Na minha opinião, a questão principal é a comunidade identificar-se. É preciso fazer reconhecer a valorização das práticas. Acho que é preciso trabalhar mais a educação, sobretudo junto dos mais jovens. Ao exemplo daquilo que se fez nos últimos anos com o ambiente e as questões ambientais, nas escolas, para as práticas ecossustentáveis. É preciso fazer isso também com as práticas de preservação da nossa história, cultura e identidade».
Falta inventário PCI e sensibilização para a valorização do património imaterial
Ainda no que toca à investigação, Alexandra Gonçalves considera que o Algarve tem falta de inventariação e registo na Matriz de Património Cultural Imaterial (PCI) e há riscos de extinção de saberes e fazeres, segundo identificou o recém apresentado «Red Book – lista vermelha das atividades artesanais algarvias» pela Cooperativa QRER no âmbito do projeto Magalhães.
«Agora é preciso dar o passo seguinte e criar sistemas de incentivo e salvaguarda daquilo que está em vias de desaparecimento e para salvaguardar algumas técnicas que ainda permanecem, mas cujos artesãos estão muito envelhecidos», sugere.
Ainda no que toca ao PCI, Gonçalves aponta o trabalho da Rede de Museus do Algarve, através do grupo de trabalho que tem vindo a mapear (online) algumas entradas, embora, apenas 10 em 16 concelhos têm registos.
Por vezes, um único. «É um trabalho essencial que precisava também de mais incentivo e de investigação aprofundada» até para uma eventual inscrição na Matriz nacional ao lado das já reconhecidas Mãe Soberana (Loulé) e Festa de Nossa Senhora dos Navegantes (Ilha da Culatra).
Gonçalves salienta ainda que as práticas turísticas do território devem contribuir para o reforço destas identidades e representações culturais, sensibilizando todos os residentes e visitantes para a sua salvaguarda e manutenção.