Ainda há muitos segredos por descobrir em Cacela Velha

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Cacela Velha é «um lugar muito especial», começa por explicar a arqueóloga Cristina Garcia da Direção Regional de Cultura do Algarve.

«Como não teve uma ocupação moderna, de construção urbana, manteve intactos os traços das vivências e das ocupações históricas mais antigas. Temos aqui níveis desde o romano tardo-antigo (século VI e VII), ao islâmico, cuja presença é a mais forte», até ao período da reconquista cristã.

A nova campanha agora em curso, e que terá continuidade nos próximos três anos, integra o projeto de investigação «Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança».

Pretende não só consolidar a informação já adquirida, mas sobretudo obter novos dados sobre o território e as comunidades que o habitaram ao longo da Idade Média (séculos X a XV). O cerne dos trabalhos é a transição e o hiato entre a ocupação medieval islâmica e medieval cristã.

Na campanha de 2001, ao longo de sete meses foram escavados 212 metros quadrados e 56 sepulturas, num total de 74 indivíduos. Nos últimos dias já apareceram mais 10 esqueletos.

«Sabíamos que estes enterramentos ainda aqui estariam. Este é um cemitério que remonta aos inícios da nacionalidade. Estou convicta que será um dos mais antigos dos povoadores cristãos após a conquista do Algarve. Fizemos datações de carbono 14 que nos dão essa antiguidade, após a saída dos muçulmanos e a ocupação do castelo de Cacela pelos militares da Ordem de Santiago. Castro Marim e Alcoutim não existiam nessa altura. Em toda esta zona do baixo Guadiana, as pessoas foram chegando atrás dos militares, ocupando os terrenos, trazendo os seus rebanhos e fazendo a sua agricultura e metalurgia. Tiveram em Cacela, o centro religioso de toda esta zona rural», um culto associado à antiga Ermida de Nossa Senhora dos Mártires, que terá funcionado fora das muralhas, até ter sido construída a atual Igreja Matriz, já no século XIV.

Marcas de uma vida dura e mistérios por desvendar

Maria João Valente, é professora auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve e zooarqueóloga. Tem uma especialidade rara em Portugal.

Trabalha com restos de animais, quer sejam associados à dieta humana, ou a deposições e enterramentos com particular significado.

«A determinada altura, Cacela tornou-se tão populosa que na última fase da ocupação islâmica, a população teve que se extravasar para fora da muralha. A nossa interpretação, por agora, é que haveria aqui um bairro portuário, de gente comum que trabalharia na terra e no mar. Depois do abandono desse bairro, temos a instalação, no mesmo local, da mais antiga necrópole pós-reconquista cristã no Sotavento algarvio. Começou por ser um espaço habitacional, que se tornou num local funerário», descreve.

Poderá ter sido por falta de espaço, «ou por qualquer outro significado que nos ultrapassa. Mas é muito interessante que tenham escolhido uma zona que tinha sido abandonada por gentes anteriores, e que a tenham escolhido, talvez associada à antiga ermida de Nossa Senhora dos Mártires que terá funcionado fora das muralhas de Cacela».

Para já, «temos a necrópole cristã, mas ainda não temos a islâmica. Então, esta gente que aqui vivia era enterrada onde? Achamos que sabemos onde poderá estar, mas a escavação ficará para o ano», promete a arqueóloga.

Esta será, aliás, uma descoberta que poderá responder a uma questão fundamental, através de análises de ADN antigo. Teria a população islâmica abandonado Cacela aquando da reconquista cristã, ou terá permanecido? Haverá relações de parentesco entre islâmicos e cristãos medievais? A que nível?

Para Cristina Garcia, este é apenas um de muitos mistérios por desvendar. «Ainda agora apareceu uma grande rua larga. O bairro islâmico está construído em plataformas. Isto não é uma urbe, mas tem uma estrutura muito bem organizada, que não se esperaria ver aqui».

Campo-escola canadiano da Simon Fraser University

Os trabalhos começaram a 18 de junho e terminam na sexta-feira, 13 de julho. A arqueóloga Cristina Garcia reconhece que o interesse da Simon Fraser University, do Canadá, em participar com 16 alunos num campo-escola «trouxe-nos algum alento e deu um empurrão» a este projeto de quatro anos.

A universidade canadiana trouxe um grupo de estudantes de antropologia física que vieram «aprender a escavar, desenhar, a fazer os registos, num sítio privilegiadíssimo».

Na verdade, conforme o «barlavento» apurou no local, este tipo de trabalhos arqueológicos no Canadá, quando envolvem tribos nativas (as Primeiras Nações), têm de obedecer a uma série de protocolos muito complicados. Na Europa, não há esse tipo de constrangimentos, pois a herança cultural tem outra dimensão, mais histórica e menos de ancestralidade.

Segundo Cristina Garcia, foi assinado um protocolo entre a Direção Regional de Cultura do Algarve, a Universidade do Algarve e a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António (VRSA) «no qual se comprometem a colaborar mutuamente no estudo e desenvolvimento histórico-arqueológico de Cacela Velha».

A intenção é fazer uma campanha anual com a duração máxima de um mês. Cristina Garcia reconhece o investimento que a autarquia de VRSA está a fazer ao assegurar alimentação, alojamento, materiais, topografia e transporte para os envolvidos, assim como o apoio do Intermarché local.

Cristina Garcia, arqueóloga da Direção Regional de Cultura do Algarve.

Um «castigo eterno» e poucas mulheres

De acordo com a arqueóloga Maria João Valente, nas ossadas cristãs escavadas em 2001, «havia dois esqueletos muito interessantes. Um homem que tinha associado ao enterramento um pendente de bronze com representação de uma vieira, símbolo da Ordem de Santiago. Poderá estar ligado às milícias que tomaram Cacela, e que eram o grande apoio dos reis cristãos. Outro caso muito curioso é o de um enterramento masculino, em que o morto tinha uma pedra em cima da face. Por norma, isto é associado a alguém que não se quer que possa vislumbrar o além. Ou seja, que não se quer renascido. Teria cometido um crime. Ou, por algum motivo, teria sido um pária da sociedade, que mereceu um castigo eterno, sem direito à ressurreição», aponta.

Sabe-se também que em Cacela vivia «gente comum. Os mais velhos teriam cerca de 50 e tal anos. Da população total, 50 por cento eram homens, 25 por cento mulheres e os restantes adolescentes e crianças», descreve Maria João Valente.

«O que é estranho é não haver mais mulheres. Pode ser que abrindo um pouco mais a área da necrópole, possamos ter outros números», supõe. Por outro lado, os antigos cacelenses «aparentam ter marcas de uma vida dura, com maleitas nos ossos».

Dieta mediterrânica ali e então

Um dos objetivos da atual campanha é a recolha de amostras para posterior análise laboratorial. Os sedimentos geológicos e paleobotânicos de espécies vegetais antigas irão permitir conhecer melhor como era a paisagem, e que alimentos eram consumidos na Idade Média.

«O que estamos à espera de encontrar são os registos botânicos», que praticamente não foram separados nas escavações de 2001.

«Não tínhamos a metodologia correta para retirar os materiais do terreno. Penso que agora é uma prioridade encontrar sementes de cereais ou restos de frutos», diz a arqueóloga Maria João Valente.

O objetivo é «ver se os frutos que aqui havia eram nativos da zona, ou viriam de África, o que não seria estranho tendo em conta que eram populações islâmicas com contactos norte-africanos. Outro tipo de registo que estamos a fazer com alguma insistência tem a ver os peixes. Sabemos que comiam raia, pescada e dourada, mas tentaremos ver se existia pescado mais miúdo. Comiam ovelha, cabra, galinha e coelho bravo que poderá ter sido criado em cativeiro, embora sem uma domesticação plena. Também caçavam com alguma regularidade o veado», possivelmente nas zonas serranas do Algarve.

«Encontrámos ainda alguns animais invulgares, como urso» que existia na Península Ibérica, e que «seriam caçados como troféus».

«Também nos aparece lince ou gato selvagem, e muito marisco como conquilha e ostra».

No futuro, um museu a céu aberto

Até ao final do ano, a equipa de Cristina Garcia e de Maria João Valente vai propor um plano de conservação e restauro das estruturas do antigo bairro medieval islâmico de Qastalla Darrag, que atualmente estão danificadas.

A ideia é que possam vir a ser um museu a céu aberto. Outro objetivo é criar uma exposição itinerante sobre a história de Cacela Velha para fazer a divulgação do sítio arqueológico nas escolas e na comunidade.

«É esse o nosso objetivo último. Isto não pode ficar apenas na esfera académica. Queremos também fazer um documentário. Cacela não tem espaço para um museu clássico, mas temos elementos para um vídeo de 15 minutos, com reconstituição em 3D, por exemplo» a exibir na Casa do Pároco (ou em Centro Interpretativo a criar), que dará «uma ideia visual de como isto era na Idade Média e como evoluiu. Acho que Cacela já merece uma musealização, algo que comunique às pessoas o valor deste lugar». Outros planos incluem ainda a publicação de vários artigos científicos, um livro temático e um livro infantil.

Cacela, a antiga

Segundo a arqueóloga e investigadora Cristina Garcia, «as fontes antigas dizem que Cacela estava bem povoada, tinha muitas hortas e muitas figueiras. Este povoado teria uma ligação ao chamado Rio de Faro (Ria Formosa), que começava aqui», sendo um local estratégico de passagem da navegação. Depois da campanha de 2001, fez-se o estudo mais de 8000 fragmentos só de cerâmica» encontrada no antigo bairro medieval islâmico de Qastalla Darrag.

Concluiu-se que «os habitantes tinham uma atividade relacionada com o mundo do Al-Andaluz. Tinham acesso a louça de mesa e a peças de uma grande qualidade artística, como as talhas vidradas de cor verde que poderiam ser importadas de Sevilha ou de Cádiz. Mostram uma grande afinidade com as louças de Silves e da ilha de Saltes, tudo cidades portuárias que faziam parte de uma rede costeira», explica.

«Os primeiros cristãos, quando conquistam Cacela, alteram o uso e a funcionalidade do espaço. Isto era um bairro com casas e só interessou à ordem militar criar uma fortaleza de vigilância marítima e de defesa terrestre. Não lhes interessou povoar, mas sim criar uma estrutura militar muito forte, para defender a guerra com Castela e a pirataria que vinha do mar. Mas tornou-se um polo religioso, devido à Ermida de Nossa Senhora dos Mártires. As pessoas da região enterravam aqui os seus mortos», explica.

Hoje, os investigadores desconhecem os limites, pois «o bairro islâmico e o cemitério cristão misturam-se. Enquanto é construída a grande Igreja Matriz, esta pequena ermida abre-se ao culto que se manteve ao longo de séculos. Sabemos isso pelos visitadores da Ordem de Cristo, que em 1478, escrevem uma frase interessantíssima: nos finais de século XV, já a ermida era local de muita romaria e vai sendo usada até ao século XVI».

No sábado, 14 de julho, um dia depois do terminus desta campanha de escavações, Cristina Garcia, Maria João Valente e o antropólogo físico Hugo Cardoso (da Simon Fraser University do Canadá), responsáveis científicos pelos trabalhos em curso, vão partilhar os resultados com o público interessado.

O ponto de encontro é no Largo da Fortaleza, às 18h00. Os interessados devem inscrever-se previamente (281 952 600 ou email: ciipcacela@gmail.com) junto do Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela.