Achado inédito em Silves testemunha a violência da Reconquista Cristã

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Trabalhos de reabilitação urbana do centro histórico de Silves trouxeram à superfície descobertas arqueológicas intrigantes, entre as quais, o testemunho de um momento de conflito que remonta ao final do domínio islâmico da cidade (século XIII).

Novembro de 2017 foi chuvoso e complicou a vida aos arqueólogos. Mas acabaria também por trazer algumas surpresas que só agora vêm a público.

A mais inesperada surgiu durante as escavações realizadas na Rua da Sé, no coração de Silves, entre os números 21 e 22. Ao início parecia «um contexto histórico arqueológico semelhante a tantos outros», revela ao «barlavento» o agora arqueólogo municipal Carlos Oliveira.

Mas não demorou muito até a equipa perceber que algo não batia certo. O que se pensava ser apenas mais um silo islâmico tinha, afinal, um enchimento completamente atípico.

«Era uma estrutura escavada na rocha, preenchida com pedras, materiais de construção e outros elementos banais. À medida que foi sendo escavada, começou a surgir uma quantidade inusitada de ossos» a cerca de 1,5 metros de profundidade.

«Chegámos rapidamente à conclusão que estavam ali vários animais em conexão anatómica (isto é, com o esqueleto completo) o que, logo à partida, é um dado incomum».

O esqueleto completo de um cavalo, ainda com ferragens, surpreendeu os arqueólogos.

«Primeiro surgiu um cavalo, ainda com as ferraduras e alguns fragmentos de argolas em ferro, que pensamos fazerem parte dos arreios. Depois detetou-se um ovicaprino, ovelha ou cabra, ainda não conseguimos dizer ao certo», revela.

Mas o que realmente espantou os arqueólogos que fizeram o acompanhamento da empreitada de reabilitação urbana do centro histórico de Silves foi a descoberta de «um esqueleto humano que estava por baixo do cavalo».

«Era de uma criança que não teria mais do que um ano». Devido à tenra idade, estimada através da dentição, não é possível identificar o género. As ossadas foram levantadas e estudadas pela antropóloga Ana Curto, já que, por lei, os arqueólogos não estão autorizados a remover vestígios humanos.

Restos mortais de uma criança que terá sido descartada juntamente com outros animais. Um achado invulgar.

«A seguir à descoberta da criança ainda encontrámos restos de, pelo menos, dois bovídeos. Ao contrário dos outros animais, contudo, o esqueleto destes não estava completo. Pensamos, até porque são evidentes algumas marcas de corte, que as partes com maior valor nutritivo (aquelas com mais carne) possam ter sido aproveitadas para consumo».

«Por último ainda surgiram um pequeno equídeo, talvez um burro ou um potro, bem como um felino (gato?) e uma ave cuja espécie ainda não foi identificada», descreve.

Apesar de todo este contexto estar ainda em fase de investigação, Carlos Oliveira não tem dúvidas que o enchimento desta fossa terá acontecido no final do período Almóada (finais do séc. XIII) que corresponde ao derradeiro momento da ocupação islâmica da cidade.

«Sim, é uma estimativa segura, a julgar sobretudo pelas cerâmicas bastante completas que foram aparecendo. Dá até a ideia de que foram destruídas num cenário catastrófico e que foram descartadas» nessa e numa segunda fossa, a cerca de três metros de distância, onde os arqueólogos também encontraram achados semelhantes, embora em menor quantidade.

«Certamente que partilharam o mesmo momento de enchimento. Ambos os contextos contêm fragmentos das mesmas talhas profusamente decoradas, características do período final do domínio islâmico em Silves», detalha.

Apesar de se tratar de uma conclusão ainda preliminar, acredita-se que estas descobertas arqueológicas sejam aquilo a que hoje se chama uma cápsula do tempo, embora constituída de forma espontânea, no que aparenta ter sido o rescaldo de um conflito armado.

«O que nos permite interpretar todo este cenário é o facto de, juntamente com os ossos, terem sido encontrado diversos materiais bélicos, como virotes de besta em ferro e um coto de lança», afirma Carlos Oliveira.

O arqueólogo municipal Carlos Oliveira escavou quase toda a Rua da Sé, uma das principais artérias de Silves.

«Debaixo de uma das pernas a criança tinha um virote de besta. Apesar de já sabermos que o seu osso não foi afetado, podemos sempre suspeitar que a seta poderia estar alojada no músculo. No entanto, dificilmente teremos a certeza se foi, ou não, esta a causa de morte».

Por outro lado, «a presença destas armas é um testemunho direto do cenário de violência resultante da conquista da antiga Silb pela coroa portuguesa e que é também corroborado pelas fontes históricas».

«A criança terá sido, por certo, um dano colateral. Ficou claro no trabalho de campo que não foi sepultada. Não houve cuidado na sua deposição. Estava de barriga para baixo e tinha uma das mãos debaixo do corpo. Portanto, alguém a atirou juntamente com o resto dos elementos que encontrámos», detalha o arqueólogo.

Carlos Oliveira sublinha que este achado não é uma lixeira comum, mas o aproveitamento imediato do que seria uma fossa islâmica.

«O que ali está cristalizado é um momento de limpeza de um cenário pós-conflito que relacionamos com a tomada de Silves. Obviamente, a presença de uma criança é o elemento mais chocante, mas não devemos perder de vista que essa é uma precepção lida à luz dos conceitos culturais da atualidade», considera.

Maria João Valente, professora auxiliar da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve e zooarqueóloga, uma área de conhecimento ainda rara em Portugal, fez um acompanhamento informal do achado.

O inesperado achado surgiu frente aos números 21 e 22 da Rua da Sé.

Isto porque investiga restos de animais em sítios arqueológicos, quer sejam associados à dieta humana, ou a deposições e enterramentos com particular significado. Aliás, também tem trabalhado nas recentes escavações em Cacela Velha.

«Fiquei admirada porque não é muito normal aparecerem numa fossa animais quase inteiros, empilhados uns por cima dos outros. Que eu me lembre, não conheço outro contexto semelhante em Portugal», refere ao «barlavento».

«Não parece haver sinais de epidemia, porque não teria atacado todos os animais da mesma forma. A presença de uma criança é algo estranho. Parece ser um testemunho de um contexto de horror, de guerra ou de chacina. Quem a perpetrou, ou quem se deparou depois com o seu resultado, teve que descartar os corpos. Ou, então, os sobreviventes nem sequer se aperceberam da criança» na pressa de evitar problemas sanitários.

«A minha apreciação preliminar, baseada no terreno, é que parece tratar-se de uma acumulação rápida, depois de um episódio violento. Isso explica porque é que se atira um cavalo inteiro» para dentro de uma fossa.

«Estamos a falar de uma cidade que foi conquistada e reconquistada muitas vezes entre cristãos e mouros, com muitas situações de batalha. Se isto se vier a comprovar em laboratório demonstra-se que houve momentos de grande barbárie. Estamos habituados a ver no cinema, por exemplo, histórias de ataques violentos. Mas, em Portugal, aquilo que vamos contando sobre nós são, na maioria das vezes, histórias de encantar», considera Maria João Valente.

«A verdade é que ao longo da nossa História existiram casos de grande brutalidade que só podem ser revelados através da arqueologia. Pessoalmente, acho que este pode ser um desses. É um contexto único», conclui.

«Se isto se vier a comprovar em laboratório demonstra-se que houve momentos de grande barbárie. em Portugal, aquilo que vamos contando sobre nós são, na maioria das vezes, histórias de encantar», considera Maria João Valente.

Portas da cidade talvez não sejam islâmicas…

Debaixo da torre albarrã em grés, as chamadas Portas da Cidade de Silves dão hoje acesso à Rua da Sé, uma das principais de Silves. Acredita-se que em tempos islâmicos seria um caminho para a mesquita.

No entanto, as recentes escavações no âmbito da reabilitação urbana do centro histórico apontam noutra direção.

Segundo o arqueólogo municipal Carlos Oliveira, foi descoberto «um pavimento de lajeado bastante robusto. Ao contrário das expetativas, não é do período islâmico. Nas juntas das pedras e até mesmo no sedimento subjacente encontrámos uma série de moedas da primeira dinastia portuguesa, que podem ir até D. Dinis. Isso data o pavimento de finais do século XIII, inícios do XIV».

E «quando começámos a escavar os níveis de época Almoáda, encontrámos uma série de estruturas que em nada coincidiam com a orientação das Portas da Cidade».

Além disso, o arqueólogo diz que toda a Rua da Sé «estava preenchida por fossas e silos islâmicos, nos quais as pessoas armazenam os seus víveres. Não estavam no espaço público. Portanto, teria um traçado muito diferente» do atual.

Islâmicos de Silves fugiam ao cânones?

Durante a empreitada de reabilitação urbana do centro histórico de Silves, na Rua da Sé, em frente ao edifício dos Serviços Técnicos da Câmara Municipal, foram descobertas mais sepulturas islâmicas.

Algumas terão sido danificadas durante a instalação de saneamento básico, nos anos 1950.

Nessa data não foi feito qualquer registo destes vestígios.

Segundo o arqueólogo municipal Carlos Oliveira, «à medida que fomos escavando para norte, apareceram várias, sobretudo de indivíduos infantis».

Esta descoberta «foi surpreendente. Na cultura islâmica, não é hábito enterrarem-se os mortos dentro de espaços habitacionais e muito menos nas zonas mais nobres, como seria a Almedina. Tendemos sempre a enquadrar estes enterramentos na época em que a Silves esteve sitiada. Mas visto que já são muitos, talvez seja o momento de começarmos a equacionar outras explicações».

Por exemplo, que os islâmicos de Silves «poderiam fugir aos cânones» conhecidos.

Antiga barcacã islâmica ainda existe em Silves

No lado poente do edifício da Câmara Municipal de Silves, no limite do perímetro amuralhado da antiga Silb, parte muralha foi cortada no século XIX para garantir o acesso ao atual edifício sede da autarquia.

Mas ainda restam as fundações daquela antiga estrutura militar. Estão agora assinaladas, à superfície, com um troço de pedra rosada. E há outro património digno de destaque. «Encontrámos o que resta de uma barbacã», explica o arqueólogo municipal Carlos Oliveira ao «barlavento».

Dito de forma simples, é um muro mais baixo com a função de proteger a base da muralha principal dos ataques da artilharia inimiga.

Silo islâmico na Rua da Sé.

Pode mesmo haver uma mesquita debaixo da Sé

Durante os trabalhos de reabilitação urbana do centro histórico de Silves aconteceu uma «situação inusitada».

Quando o pavimento foi rebaixado para se colocar a calçada portuguesa surgiu «uma estrutura magnânima», segundo o arqueólogo municipal Carlos Oliveira.

«Percebeu-se que é da época islâmica. Atendendo à orientação e à localização pensamos que corresponda às fundações da mesquita principal da cidade. Está claramente debaixo da Sé catedral, mas a escavação não ofereceu muitos vestígios diretamente relacionáveis com a sua utilização».

Como seria complexo deixar as estruturas à vista, decidiu-se fazer, à superfície, uma réplica do que está no subsolo, «respeitando o estilo arquitetónico». E está em fase de execução um totem interpretativo.

Grande parte dos vestígios do edificado islâmico da encosta sul do centro histórico de Silves terão desaparecido na idade moderna. O que resta hoje são os silos e as fossas escavadas em rocha.

Obras complexas

As obras de reabilitação urbana do centro histórico de Silves decorreram de novembro de 2017 a junho de 2019.

O acompanhamento arqueológico ficou a cargo da Archeo’Estudos, Lda.

Carlos Oliveira e Miguel Cipriano Costa dirigiram os trabalhos.

O empreiteiro foi a Oliveiras SA, sendo a fiscalização assumida pela Câmara Municipal de Silves.

Carlos Oliveira chama ainda a atenção para outro mistério.

A dada altura, provavelmente já na idade moderna (pós-medieval), talvez na sequência do terramoto de 1755, grande parte dos vestígios do edificado islâmico da encosta sul do centro histórico de Silves terão desaparecido.

Basicamente, o que resta hoje são os silos e as fossas escavadas em rocha. São os únicos vestígios entre o século VIII e o século XIII.