Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA) tem novos órgãos sociais e programa até 2024. Ponto alto será lançamento, em Portimão, da revista Meridional, em dezembro próximo.
A necessidade de recuperar a matriz inicial do Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA), que é a divulgação da História do Algarve no contexto da sua ligação com Sevilha, Marrocos e a Ibero-América, levou aquela associação a eleições, em maio, das quais surgiram novos corpos sociais e um plano estratégico para o triénio 2021-2124.
Assim, Maria da Graça Ventura, agora aposentada do ensino e com mais disponibilidade para se dedicar aos vários projetos do ICIA, assume a presidência da direção. Sucede a João Ventura que o liderou durante dois mandatos, imprimindo um rumo diferente, entre 2014 a 2020, sobretudo com um foco na literatura e mais precisamente na obra de Manuel Teixeira Gomes.
Nesta nova fase, continuará a aposta nos ciclos de conferências e as palestras temáticas trimestrais. No próximo ano regressam também os seminários de História do Algarve, seguindo uma linha diacrónica e abordando vertentes que incluem a arqueologia, a história de arte, a mitologia, a história política, social e económica da região.
Com as novas plataformas online a darem uma ajuda, estão ainda previstos colóquios internacionais. Em 2022, o tema será o bicentenário da independência do Brasil. «Antevemos um grande acontecimento em Portimão. Será em formato misto, presencial e online» agendado para setembro, com coordenação de historiadores portugueses e brasileiros.
Maria da Graça Ventura destaca ainda o colóquio internacional sobre Mazagão (Marrocos) e Nova Mazagão (Brasil), agendado para 2023.
«Em 1769, por ordem de D. José I, Portugal abandonou Mazagão, atual El Jadida, a última praça portuguesa no Norte de África, fundada pelos portugueses na costa ocidental de Marrocos, no século XVI. Centenas de famílias portuguesas e muitos marroquinos escravos foram para a Amazónia, onde fundaram uma nova cidade nas margens do rio Mutuacá, na região de Macapá (nordeste brasileiro). Ainda hoje existe, embora noutro local, e segundo o arquiteto Frederico Mendes Paula, todos os anos se organiza uma festividade que culmina com um combate entre mouros e cristãos», diz.
Em 2024, caberá ao historiador António Jorge Afonso coordenar o último da série, dedicado às relações entre Portugal e Marrocos nos séculos XVIII e XIX. Também neste ano se celebrará o centenário de elevação de Vila Nova de Portimão a cidade com um programa a definir oportunamente.
A grande novidade, para já, é o lançamento de uma revista nova, a Meridional, em parceria com a editora algarvia Sul, Sol e Sal. A apresentação está prevista já para o mês de dezembro em Portimão.
«Vamos editar este projeto com a Sul, Sol e Sal, uma pequena editora sediada em Loulé, na Casa do Meio-Dia, que publica livros com critério e muita qualidade. Isso para nós é fundamental e faz parte da nossa estratégia de afirmação no Algarve», revela a presidente do ICIA.
Do ponto de vista geocultural, a Meridional é um revista de estudos do Mediterrâneo. Este primeiro número contará com um dossiê temático sobre Manuel Teixeira Gomes, que recupera alguns textos como «O deslumbramento do Sul e o prazer da viagem» de Maria da Graça Ventura, e apresenta dois inéditos, um da autoria de Carlos Osório, «sobre a vida de Teixeira Gomes enquanto estudante em Coimbra» e outro de António Jorge Afonso, sobre a Argélia no tempo da colonização francesa. Outro estudo interessante e pertinente é sobre a pneumónica de 1918 e a COVID-19 da autoria de Paulo Girão.

A revista terá ensaios, crónicas, poesia, um dossiê de fotografia e recensões críticas de livros publicados em 2020 e 2021.
«Para este número temos um texto da Lídia Jorge sobre Sagres, outro de Eduardo Lourenço (In memoriam) e um dossiê fotográfico do fotógrafo João Mariano. Além dos autores convidados, houve uma call com vista à publicação de artigos que foram selecionados por um conselho editorial. Tudo o que fazemos baseia-se no rigor e na criatividade. A não que ser que se tratem de autores consagrados que dispensam qualquer avaliação externa, os conteúdos têm de ser revistos por um conselho de avaliadores que faz uma avaliação cega, anónima, e isso garante a qualidade. Penso que esta revista terá um impacto muito grande ao nível regional», prevê.
Está também previsto o regresso da Atlântica, Revista de Cultura Ibero-americana que, após seis edições, viu a publicação interrompida em 2008. Desta vez, terá formato digital e iniciará a sua publicação em 2022.
Ainda no âmbito das publicações, o ICIA apoiou a publicação da tese de doutoramento da associada Florbela Frade, «As comunidades sefarditas e a Nação Portuguesa de Antuérpia (séculos XVI-XVII)», integrando-a na sua Coleção «Travessias», uma parceria com as Edições Colibri.
O novo fôlego do ICIA, segundo a dirigente, deve-se também à entrada de novos historiadores no Algarve como Marco Sousa Santos (doutorando pela Universidade de Coimbra), Fernando Pessanha (Arquivo Municipal de Vila Real de Santo António), Frederico Mendes Paula (Câmara Municipal de Lagos) e Daniel Santana (Arquivo Municipal de Tavira), além da recuperação dos associados José Carlos Vilhena Mesquita (Universidade do Algarve), Ana Isabel Soares (Universidade do Algarve) e Luísa Martins (Arquivo Municipal de Loulé).
Os novos associados espanhóis Manuel Fernández Chaves (Universidade de Sevilha) e Juan Ignacio Pulido (Universidade Alcalá de Henares) e os historiadores brasileiros Rogata del Gaudio e José Newton Meneses (Universidade Federal de Minas Gerais) abrem novos horizontes de pesquisa e de abertura do ICIA a uma comunidade científica de diferentes latitudes.
Maria da Graça Ventura enaltece ainda a importância do conselho científico (constituído por vários intelectuais de prestígio), como garante da qualidade das atividades científicas e culturais.
Ainda em relação aos novos corpos sociais, a direção do ICIA conta com o historiador António Jorge Afonso, como vice-presidente, que assegura a componente científica da História do Magreb, e de Elsa Martins, licenciada em Filosofia, que se está a dedicar à fotografia.
A Mesa da Assembleia Geral passa a ser presidida pela escritora Lídia Jorge, associada honorária, que sucedeu ao escritor Nuno Júdice. Ricardo Palet e Filipe Pimenta entraram para o conselho Fiscal presidido por Custódio Coelho.
Por fim, Graça Ventura garante que o ICIA diversificará a investigação e a divulgação da história local e regional, no contexto global, contando com as competências dos seus associados e o apoio das entidades públicas, em especial do município de Portimão e da Direção Regional da Cultura do Algarve.
Um trabalho científico pioneiro
O Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA) nasceu a 21 de julho de 1995. «Éramos a única instituição em Portugal que organizava encontros científicos sobre a história e cultura da Ibero-América», diz a atual presidente Maria da Graça Ventura.
«A verdade é que conseguimos fazer coisas únicas durante um período de cerca de 10 anos. Trouxemos a Portimão um escol de historiadores e escritores que, em maio, durante três dias, colocaram no mapa esta cidade, então sem programação cultural cosmopolita. Conseguimos reunir historiadores da Argentina, do Peru e do México ao longo de 11 Jornadas de História Ibero-americana. Entretanto, as universidades começaram também a organizar os seus encontros científicos sobre esta temática. Nessa altura, o nosso público era constituído por professores que, entretanto, passaram a ser obrigados pelo Ministério da Educação a frequentar ações de formação acreditadas. Publicámos 11 livros de atas que ainda hoje são citadas por inúmeros historiadores. Durante cinco anos também gerimos vários cursos de Mestrado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o apoio da Universidade do Algarve (UAlg), o que proporcionou a vários professores do ensino básico e secundário a obtenção do grau de mestre. Apesar do apoio do município de Portimão a estes eventos, contudo, devemos ser a única associação do concelho que nunca recebeu uma medalha de mérito municipal, quanto mais não fosse pela nosso trabalho persistente durante 26 anos consecutivos», lamenta a presidente da direção do ICIA.
Jorge Fernandes Gramaxo, o negreiro de Portimão
Uma das principais vertentes do Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (ICIA) é a investigação. Maria da Graça Ventura tem vindo a aprofundar o estudo sobre o papel dos algarvios no comércio com a navegação para a América espanhola.
«Sevilha ou Sanlúcar de Barrameda eram locais de partida das naus espanholas que iam para a América, passavam em frente ao Algarve, contornavam o Cabo de São Vicente e seguiam rumo ao ocidente. Portanto, o Algarve, desde a primeira viagem de Cristóvão Colombo, foi participando cada vez mais ativamente no comércio com a América espanhola», diz Maria da Graça Ventura, que tem vindo a estudar e a publicar vários estudos a esse respeito.

Ainda este ano, com a chancela da editora Tinta da China, a autora publicará um novo livro com o título «Por este mar adentro – êxitos e fracassos da mareantes e emigrantes do Algarve na América hispânica» cuja apresentação está prevista para dezembro.
Um capítulo do livro vai revelar o essencial da história do negreiro Jorge Fernandes Gramaxo, natural de Vila Nova de Portimão, que em 1620 se tornou o mais rico e influente comerciante em Cartagena das Índias, na atual Colômbia.
«De 1585 até 1635, a família Gramaxo teve um papel preponderante no domínio do tráfico negreiro. Dessa família, o elemento nuclear era o portimonense Jorge Fernandes Gramaxo, cristão-novo. A sua família em Portimão foi quase toda presa pelo Tribunal da Inquisição de Évora, alguns condenados à fogueira por alegadas práticas judaizantes, outros reconciliados», recorda.

«Jorge tinha dois irmãos mercadores em Lisboa, dois sobrinhos em Cabo Verde e nos Rios da Guiné. Então, criaram uma rede de negócios em torno do tráfico negreiro. E embora fosse cristão-novo, ele e os irmãos nunca foram perseguidos pelo Santo Ofício, o que não deixa de nos surpreender. Vários cristãos-novos fugiram para as Índias de Castela, talvez por isso existisse em Portimão uma Rua do Peru. Jorge Fernandes Gramaxo tornou-se um homem muito rico e poderoso. Desempenhou cargos municipais em Cartagena, e além de mordomo do Hospital dos Espanhóis, foi patrono e fundador do Convento de São Diogo dos Recolhidos Descalços da Ordem de São Francisco, pois isso fazia parte da estratégia de integração social na sociedade, onde fez questão de ser sepultado», acrescenta.

«Tenho vindo a estudar a sua biografia que é altamente complexa, pois é preciso recolher elementos nos mais diversos arquivos. O que é curioso, é que ele, apesar de ser cristão-novo tem uma costela de cristão-velho, porque o bisavô era cónego da Sé de Silves. Os Gramaxo cristãos-velhos tinham um brasão idêntico ao que ele mandou colocar na sua lápide sepulcral, em 1626, no referido Convento que fundou em Cartagena. E ainda hoje lá está».
Para este livro, a investigadora e presidente do ICIA reuniu «os dados resultantes de uma investigação no Archivo General de Índias em Sevilha sobre os portugueses na América espanhola. Uma base de dados de 1.400 pessoas de todo ao país, incluindo mareantes de Lagos, Portimão, Faro e Tavira no século XVI (até 1640). Desses, escolhi os naturais do Algarve. Quase todos morreram por lá e remeteram a herança à família que cá ficou. Um caso excecional foi Francisco Barreto que era capitão-mor de Faro e senhor de Quarteira e primo irmão do vice-rei do Peru, o Príncipe de Esquilache, que o nomeou General da Armada do mar do sul, entre 1615 e 1621. Regressou e morreu em Faro. Deixou um filho natural que foi governador no Brasil no século XVII, o qual determinou, em testamento, que deveria ser sepultado junto aos seus antepassados, os Barreto, fundadores do Convento de Santo António de Loulé».