Dança e Amália num solo para dois intérpretes

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José Laginha e Marlene Vilhena estreiam nova criação no Teatro das Figuras, em Faro. Amália humanista, acontecimentos chave do século XX cruzam-se com uma busca pessoal pelo sentido da dança.

São seis momentos, em que o fim repete o início. Tem por título «um pedido, por favor dê-me um exemplar de deus», citação de um poema do «Livro da Dança» de Gonçalo M. Tavares, e estreia no Teatro das Figuras, em Faro, na sexta-feira, dia 29 de abril, às 21h30.

Começou de forma informal, com Marlene Vilhena a desafiar José Laginha, dez anos depois de terem dançado juntos, a fazer uma nova criação.

«O único tema ou assunto para o motivar teria que ser algo de profundo. Porque não um trabalho sobre Amália Rodrigues?» recorda a intérprete ao barlavento. «Não se toca em coisas sagradas. A intimidade que tenho com Amália não me permitia fazê-lo, por respeito, por medo e por incapacidade», acrescenta José Laginha, responsável pelo percurso dramatúrgico, interpretação, criação, e espaço cénico.

Ambos, contudo, encontraram nos aspetos mais íntimos da vida e obra da artista um ponto de partida «para falarem da sua própria dança» e não na biografia da fadista.

«Fomos revisitar o passado e questionar toda a nossa formação e todo o tempo em que tivemos parados: o que é o nosso corpo e a nossa dança hoje? O que é essa intensidade, esse respeito, integridade e contenção que encontrámos na Amália? Esta é a nossa busca artística», acrescenta Vilhena, que assina a criação e a interpretação.

A partir daqui, a pesquisa cresceu em elementos interiores e também da história recente.

«Quando começámos a pensar na nossa dança, fomos buscar as nossas memórias daquilo que foi importante para nós, quer coisas mais antigas, quer das mais atuais», explica José Laginha, conhecido também por ser o diretor artístico do Centro de Artes Performativas do Algarve (DeVir/ CAPa), embora este se trate de um trabalho independente daquela estrutura.

«No meio dessa procura, vimos que em 1962 ocorreram três acontecimentos revolucionários que transformaram o modo de entender a música e a cultura pop, a dança e o fado. Os Beatles gravaram a primeira audição e em Nova Iorque juntou-se um conjunto de bailarinos modernos, entre os quais Yvonne Rainer, que criou um solo chamado Trio A. É um marco da história da dança contemporânea que revisitamos neste trabalho. E nesse mesmo ano, Amália grava Busto, o disco de referência, numa parceria com Alain Oulman, de onde nasce o fado novo. E mais: em março de 1962 houve a primeira greve estudantil em Portugal, um ano depois do início da Guerra Colonial e que foi percursor do Maio de 1968», enumera Laginha.

O espetáculo começa e acaba com a ideia de ressurreição. Sugere o suicídio abortado de Amália e acaba com a audição do primeiro ensaio de Fado Peniche, com Alain Oulman ao piano e Amália a improvisar, com a sala em blackout. Um hino à liberdade em pleno Estado Novo, com o poema de David Mourão Ferreira a referir-se à prisão de Álvaro Cunhal.

«Faz todo o sentido ser ouvido hoje, quando vivemos uma guerra na Europa perpetrada por um ditador», descreve. E há mais para ouvir.

«Convidámos cinco compositores, quatro portugueses e um espanhol, que já trabalharam com fadistas. Pedimos composições originais, que não fossem fado mas tivessem em mente Amália».

Compuseram Filipe Melo, João Paulo Esteves da Silva, Júlio Resende, Mário Laginha e Raül Refree, um tema para cada ato. Há ainda uma passagem pelo Novo Cinema português, com cenas de Belarmino, filme de Fernando Lopes que mostra «a Lisboa de Amália» e ainda um solo literário de André Teodósio.

Em suma, «sem recorrermos a referências diretas, esta criação acaba por encontrar em Amália a integridade e o respeito, a intensidade e a contenção que procuramos na dança. Ela falava muito do acontecimento, do irreproduzível, de contenção e vontade, o que tem muito a ver com improvisação. Não sou Amaliano, mas creio que a dança tem de ser de entrega, tal como era a sua música», conclui Laginha.

Os bilhetes custam 10 euros (cinco euros para menores de 30 anos) e podem ser reservados por telefone (289 888 110) ou email (bilheteira@teatrodasfiguras.pt).

Mais tarde, o espetáculo será apresentado no Cineteatro Louletano, na sexta-feira, dia 24 de junho, às 21 horas. Esta é uma coprodução da Câmara Municipal de Loulé e do Teatro das Figuras, com o apoio da Direção-Geral das Artes (DGArtes).