Dinheiro do próximo quadro comunitário poderá não chegar para todas as intervenções que o património precisa, mas a aplicação dos fundos europeus em cultura torna o Algarve «uma referência nacional».
O famoso Arco da Vila em Faro, a Igreja de Sebastião, em Lagos, «que está num estado estrutural lamentável» e até a Sé de Silves, são alguns dos monumentos na lista das prioridades da Direção Regional de Cultura do Algarve (DRCAlg), segundo enumerou o arqueólogo Rui Parreira, na tarde de quinta-feira, dia 28 de julho, durante a jornada de trabalho subordinada ao tema «Algarve: Investimentos com Fundos Europeus na Cultura e Património Cultural», que teve lugar no Museu de Lagos Dr. José Formosinho.
«Estamos neste momento num processo de revisão dos Planos Diretores Municipais (PDM). É uma oportunidade para identificarmos os bens culturais e mapeá-los na carta de património anexa aos PDM. Temos 201 bens culturais imóveis classificados, dos quais 138 de âmbito nacional e os restantes 63 de interesse municipal. A este conjunto de imóveis com proteção legal acrescem outros 28 em vias de classificação. É significativo como os municípios do Algarve, à exceção de Silves, apostam mais no âmbito nacional do que no reconhecimento local. É uma situação que temos procurado inverter», enumerou.
Desde 2011 que a DRCAlg elabora um plano estratégico de intervenções prioritárias. «Devo salientar que é fundamental o papel dos municípios nesta operação. O plano permite estimar valores de investimento e estabelecer metas a curto e médio prazo. É este documento que, conjugado com a carta de risco do património edificado, nos serve de base para propor a tomada de decisão. Como não há dinheiro para tudo, restringimos a lista aos bens classificados de âmbito nacional», explicou Rui Parreira.
«Tem de haver uma distribuição pensada e discutida», tarefa dificultada pelo «PROTAL de 2007 que está desatualizado e que deveria estar mais adiantado no seu processo de revisão, mas que continua a ser o nosso documento estratégico de referência».
As causas de degradação do património são várias, desde a sobrecarga de visitantes, como acontece por exemplo no Forte do Beliche, em Vila do Bispo, ou o uso que é dado aos monumentos. Em Cacela Velha, a Guarda Nacional Republicana (GNR), que ocupa a fortaleza, «fez obras no interior. Infelizmente, esqueceu-se que a própria estrutura corre riscos na sua base de sustentação. É uma intervenção prioritária a que temos de dar atenção», alertou.
Parreira também chamou a atenção para aquilo que descreveu como «ruínas sem-abrigo». É o caso das Ruínas da Gafareia Medieval, em Lagos, e da Villa Romana do Montinho das Laranjeiras, em Alcoutim.
«Fez-se o investimento, fez-se a recuperação», mas continuam à mercê dos elementos e da exposição atmosférica. O arqueólogo salientou ainda a «importância da manutenção e salvaguarda» destes sítios com o projeto de cobertura que está a ser desenvolvido nas Ruínas de Milreu, em Estoi. Além do risco estrutural, outro critério para atalhar os processos de recuperação é a adaptação às alterações climáticas. «Temos monumentos que estão, literalmente, a ser comidos pela erosão costeira».
Património e identidade
Antes de falar sobre a realidade, o arqueólogo da DRCAlg usou uma visão metafórica, com base na maqueta de uma aldeia imaginária feita nos anos 1990 e que é uma das peças em exposição no Museu de Lagos. «Confere tudo aquilo que se ambiciona para o futuro da nossa herança cultural, isto é, o investimento na valorização dos bens culturais como afirmação e demonstração de identidade, e o desejo de usar essa identidade como fator de desenvolvimento com proveito social e económico para a comunidade».
No entanto, «esta questão situa-nos no campo do conflito social, como a sociedade aceita e integra ou, pelo contrário, repudia e esquece a sua herança cultural. Nem todos estarão de acordo onde é que o investimento deve ser feito. Prevalece sempre a vontade dos grupos que estão política e socialmente dominantes», numa espécie de «memória autorizada». Espreite-se para o centro do centro histórico de Lagos, onde «temos um efeito Donut. Basta irmos lá fora para nos apercebermos do que acontece quando é deixada desprotegida uma parte do património cultural. A especulação aumenta, os edifícios crescem em altura, e todo o perfil urbano é alterado. É o que acontece também noutras cidades» do Algarve.
Por sua vez, Antónia Correia, professora na Universidade do Algarve e presidente do primeiro laboratório colaborativo em turismo e inovação do país (KIPT colab), que junta 20 empresas e pretende vir a ter um papel ativo no desenvolvimento turístico da região, afirmou que «sem cultura não haverá viagens ou razão para as fazer. Apesar de algumas vozes dizerem que o turismo leva à descaracterização das regiões, o que hoje se verifica é que o turista procura a autenticidade. Se olharmos para os números e apesar do esforço, nós representamos 5 por cento das empresas de atividade cultural, quatro por cento do emprego em atividades culturais, dois por cento das renumerações com pessoal em cultura e 2,4 por cento de prestação de serviços culturais. Estamos muito longe de nos podermos comparar com o resto do país. Por isso, tem de haver uma génese de atividade económica com a cultura. Quais os desafios? Continuamos a lutar para preservar espaços culturais, arqueológicos em espaços que dariam excelentes prédios. A especulação imobiliária está muito presente e leva a que isto continue com um risco associado ao desenvolvimento da atividade cultural. Temos degradação dos monumentos, sazonalidade, dificuldade de diálogo entre visitantes e residentes, falta de recursos financeiros. E não podemos dissociar cultura de criatividade», recomendou.
Novas rotas, criatividade e museus diferenciados em rede à escala regional e temática
Por sua vez, José Gameiro, diretor científico do Museu de Portimão, mostrou-se otimista sobre o trabalho da Rede de Museus do Algarve. «Numa perspectiva de futuro, é uma entidade promissora e motivadora de projetos e de partilha de recursos. Temos de construir uma rota física visitável dos nossos museus. E é necessário, a nível regional, apoiar a sua divulgação, porque é difícil que uma autarquia per si consiga apoiar o trabalho que estamos a fazer para todos. Por fim, e nessa ideia de futuro, penso que é fundamental haver pensamento estratégico com alguma inovação e criatividade. Que os projetos futuros tenham alguma originalidade, evitando repetir ou duplicar conteúdos ou tipologias demasiado idênticas», recomendou.
«Penso que se deverá apostar num maior reforço de propostas e em dotar a região de novas rotas visitáveis, com autenticidade e singularidade temática. Redes de geometria variável, no sentido em que o Algarve possa ser um pouco repartido pelas afinidades históricas e culturais» do território, assim como pela «partilha de responsabilidades. Por exemplo, uma eventual rota do Arade partilhada por quatro municípios, uma rota industrial, uma rota romana, islâmica, medieval ou mediterrânica. Há pano para mangas, sobretudo com uma maior colaboração institucional com a vizinha Andaluzia e porque não com a Europa?».
Gameiro referiu-se ainda ao grupo de trabalho do Museu Arqueológico e Virtual do Algarve (MAVA), que dará a conhecer todo o espólio que se encontra em museus fora da região. «Será uma forma de nos reencontrarmos com a nossa história».
Algarve, um «manual de boas práticas» culturais
No uso da palavra, José Apolinário sublinhou que «o investimento no património e em locais de interesse cultural é um exemplo da boa aplicação de fundos europeus geridos na região. Estudos de opinião do Eurobarómetro indicam que 80 por cento dos portugueses inquiridos são favoráveis a investimentos em cultura através de fundos europeus, assim como defendem que a gestão deve ser tomada a nível regional. Infelizmente, não foi o que sucedeu na definição dos investimentos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) na área da cultura, onde faltou uma visão sobre a importância do património na região, porventura por uma imagem distorcida sobre a relevância da cultura e do património cultural para o turismo do Algarve».
O presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, lembrou que «os fundos europeus devem respeitar o princípio da adicionalidade, acrescentar valor, criar condições para outros investimentos públicos e privados».
No atual quadro financeiro plurianual (Algarve 2020), a região mobilizou 19,6 milhões de euros do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) que permitem a realização 33 milhões de investimento elegível em património natural e cultural. Uma verba que se somou ao investimento não elegível assumido pelos municípios. «Temos ainda de concluir alguns dos projetos aprovados ou, em alguns poucos casos, fasear a sua concretização» para o próximo quadro.
Como metas, apontou a criação da «Rota dos Descobrimentos, com o papel crucial de Lagos, a marca do Património Europeu de Sagres, a Rota do Arade e desencadear uma rede nacional de Museus do Mar».
Por fim, Isabel Cordeiro, secretária de Estado da Cultura, embora não tenha trazido novidades sobre uma possível reconciliação do casamento entre turismo e cultura, encerrou os trabalhos com elogios. «O Algarve tornou-se uma referência nacional, uma espécie de manual de boas práticas, no que diz respeito ao aproveitamento dos fundos europeus na área da cultura, requalificando património material e imaterial, o que tem impacto na economia regional e nacional e na vida das populações residentes», afirmou.
A jornada de trabalho contou ainda com a presença de Elena Moran, coordenadora do Museu de Lagos Dr. José Formosinho, de Alexandra Rodrigues, diretora da Escola Superior de Gestão Hotelaria e Turismo da UAlg, de João Fernandes, presidente do Turismo do Algarve, de Hugo Pereira, presidente da Câmara Municipal de Lagos, de Dália Paulo, diretora Municipal de Loulé, entre representantes de várias entidades.
No âmbito do Programa ALGARVE 2020, através do eixo Património Natural e Cultural foi disponibilizado um montante de cerca de 53 milhões de euros, que permitiu o desenvolvimento de 47 operações, entre as quais, o Museu de Lagos Dr. José Formosinho (com um investimento total na ordem dos 7 milhões e duzentos mil euros, com uma comparticipação do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) de cerca de 2 milhões e 700 mil euros e cuja requalificação mereceu uma menção honrosa por parte da Associação Portuguesa de Museologia (APOM), os Banhos Islâmicos e Casa Senhorial dos Barretos (Loulé), o Projeto Revelim e Castelo (Castro Marim), o projeto da Sé (Silves), o projeto de requalificação do Cineteatro António Pinheiro (Tavira), o projeto dos Monumentos Megalíticos de Alcalar (Portimão) e o Projeto Bezaranha, Cultura em Rede, da responsabilidade da AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve.
A jornada foi promovida pela Autoridade de Gestão do Programa Operacional – CRESC ALGARVE 2030 e pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Algarve, em parceria com o município de Lagos e com a Direção Regional de Cultura do Algarve.