A Construção do Algarve, ou quando a região inspirava a arquitetura

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Ricardo Costa Agarez, arquiteto, investigador e historiador, apresentou A Construção do Algarve, em Faro, cidade case study da época de ouro em que o tradicional algarvio inspirou o movimento modernista.

Um autor «sensorial» e embebido de memórias de um Algarve com «o cheiro da figueira, da alfarroba, da cal, da terra, da escaiola, do branco e da cor que se foi rebocando com o tempo», mas também de «sítios da sofisticação máxima, como o Clube Praia da Oura, cuja piscina tinha parede de vidro no lado que dava para o bar, ou a experiência cosmopolita» que era ver, em criança, «os hippies à noite na baixa de Albufeira» no final da década de 1970, encantou a plateia lotada para ver a apresentação do livro A Construção do Algarve – Arquitetura Moderna, Regionalismo e Identidade no Sul de Portugal, 1925-1965, no sábado, dia 3 de junho,  no âmbito da «Primavera Literária», no Pátio da Biblioteca no Jardim da Alameda, em Faro.

Teresa Valente e Ricardo Costa Agarez.

Ricardo Costa Agarez, arquiteto, investigador e historiador da arquitetura e das cidades, começou por explicar que há cerca de 20 anos começou a trabalhar com o arquivo pessoal do arquiteto Manuel Laginha, «onde encontro uma arquitetura que é claramente um moderno, mas muito ligado à terra, muito ligada ao local e muito ligada à região com a utilização de materiais locais e com a mesma autorização de formas. Isso levou-me a pensar numa hipótese de uma espécie de regionalismo crítico, que é um conceito da elite arquitetónica internacional que eu queria desmontar em Portugal. Um exemplo muito interessante para mim é esta declinação regional do Moderno. Foi isso que me chamou a atenção» e o tema que viria a ditar a sua tese de doutoramento que, até agora, apenas estava disponível em inglês. E continuou. «Fui perceber melhor o que é que se passava com esta região naquela época, naquele momento história».

«Muitos estrangeiros, muitos viajantes que passavam por Faro, Olhão e Vila Real de Santo António, ficavam impressionados», mas Agarez notou a prosa de Raul Lino, algures em 1968 e publicada numa revista turística alemã: a primeira impressão que a paisagem algarvia nos transmite é a sua escala. É pequena e graciosa. A província é pobre em monumentos. Não se erguem altas montanhas e o tom dominante de todos os panoramas é a modéstia e a delicadeza. Pareceu-me sempre que a paisagem algarvia tinha qualquer coisa de feminina. Na escala, na diminuta dimensão das formas naturais, na pequenez das árvores e não menos, na frágil timidez das casas humildes. Era assim o Algarve que eu amei».

«Esta descrição um bocadinho sentimentalista é muito bonita para mim. É elucidativa de uma característica que acho muito interessante no Algarve. Comparado com o sul de Espanha, a escala é sempre muito mais diminuta. E muita sorte temos nós nessa característica. No Algarve temos esta delicadeza que Raul Lino apontou aqui muito bem», explicou. 

André Tavares, Teresa Valente e Ricardo Costa Agarez.

«Há um primeiro capítulo do livro que trata a visão dos escritores, da literatura, dos geógrafos, da geografia humana e dos etnógrafos. Uma visão que acho que influenciou muitos os arquitetos e que vem numa trajetória de interesse intelectual mais amplo sobre o Algarve», disse. 

Antes de explosão turística, Sophia de Mello Breyner escreve: «diz que há no Algarve uma paisagem e uma luz que pedem arquitetura. E, portanto, há esta espécie de uma imagem que se cria, que é uma região que está quase a pedir arquitetura moderna. Muito por culpa do vernáculo, da arquitetura local do barro e da cal, lisa e pura como a arquitetura moderna. Esta associação é sistemática, constante e durante décadas vai continuar a ser formada». Sofia termina o poema: aqueles que não amem nem o espaço nem a sombra nem a luz, nem o cimento nem a pedra nem a cal nem o próximo não poderão criar boa arquitetura. «Uma boa lição que todos nós arquitetos devíamos tentar manter em mente», citou. 

Manuel Gomes da Costa, Casas dos Magistrados, Faro, 1960-1964.

David Mourão Ferreira «também escreve muito inspiradamente sobre o Algarve uma reflexão sobre a ligação entre esta nostalgia do passado mítico, que tem a ver com os gregos até aos árabes, e todo uma série de civilizações como tentativa de resolver as situações de carência absoluta. Isto é uma região também ela de grande necessidade, de grande pobreza. Sobretudo no momento, quando estamos a falar nos 1940 e 1950. Esta tendência à nostalgia representa no plano psíquico formas de compensação para o drama secular de carência económica que se tentou, ou tenta resolver, no plano social, através do recurso à imigração. Imigrantes são igualmente os que partem e os que ficam. Uns emigram no espaço e outros no tempo. Essa é a única diferença».

No entanto, e deixou bem claro, os protagonistas do livro não são apenas os arquitetos, mas todos os que os acompanharam durante este período, desde construtores, engenheiros, decisores e outros atores da construção da paisagem. «Eles não estão fora nem estão contra. Fazem muito parecido. Fazem muito à arquiteto. Houve um fenómeno fantástico de contágio, transversal e muito abrangente. Uma verdadeira atmosfera e sopa de interesses na arquitetura moderna», disse.

Carlos Ramos para a DGEMN, posto da Guarda Fiscal em Livramento, Tavira, 1936-1938.

Sem se mostrar fundamentalista, Agarez referiu-se a Faro, que em conjunto com Olhão, ocupa uma grande parte do livro editado pela Dafne.

«Faro nos anos 1950 é uma cidade que se transforma radicalmente. Há uma espécie de canalização do dinheiro feito no comércio da fruta, para a construção civil. Essa transformação é bastante acelerada e passa rapidamente de uma arquitetura mais tradicional como a de Jorge de Oliveira», a uma arquitetura moderna.

«Faro é o palco da exuberância absoluta de Manuel Gomes da Costa, que a faz brilhar nas subtilezas dos jogos de claro-escuro, seguido de perto por outros que fazem uma riqueza de texturas e de rendilhados em toda a cidade. São ruas inteiras praças de uma arquitetura muito notável, sempre com uma analogia ao vernáculo algarvio», acrescentou.

Jorge de Oliveira, Edifício Soares, Faro, 1954-1955.

«Estes prédios e estas casas, hoje, não se coloca a questão de virem abaixo, mas a questão das pequenas alterações. E esta não é uma visão patrimonialista. Não a tenho, de todo. Acho que temos de ir habitando e apropriando-nos dos edifícios, sempre. Não podemos parar no tempo. Faro não quer ser um museu de arquitetura moderna, mas quer, com os cidadãos e pelos cidadãos, fazer as intervenções necessárias para se apropriar destes edifícios, mas sem perder a riqueza plástica que faz deles autênticas peças de escultura urbana. É como se fossem peças de design mas à escala urbana. Isto não é comum de se encontrar. Não é comum. Internacionalmente, não encontro exemplos. Há aqui um tom que é claramente regional» e há até a presença da citada «delicadeza, em jogos de cruzamento de planos». E isto explica-se porque houve um percurso, «que vem detrás até chegar» ao expoente máximo nos anos 1970.  Após a apresentação, Teresa Valente, arquiteta da Câmara Municipal de Faro, debateu algumas ideias com o autor e sublinhou a importância da obra.

«É mesmo com muita sinceridade que digo que são muito necessários trabalhos como este para nós, nas angústias diárias, vermos como podemos aceitar a questão da transformação. É fundamental para todos os que constroem, projetistas e construtores, que o façam com conhecimento, com identificação de funções que não sejam meramente do critério pessoal e que percebam que há muito mais em jogo. E também para todos os que usam e pertencem à cidade, que ao conhecerem melhor esta arquitetura possam efetivamente também entendê-la, participar melhor na sua apropriação, transformá-la naquilo que seja necessário e possível, e que o futuro seguramente não passe pela sua total destruição ou pela negação do que ela nos traz».

Inácio Peres Fernandes para a DGSU, Bairro de Casas para Pescadores, vista geral e estudo prévio: perspetiva de um par de casas de «Tipo I», Olhão, 1945-1949.

Ricardo Agarez doutorou-se na University College, de Londres, em 2013, e a sua tese foi publicada na língua inglesa original pela Routledge, em 2016. O texto foi traduzido pelo pai e a edição contou com os apoios da Fundação Calouste Gulbenkian, da Câmara Municipal de Faro, do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território DINÂMIA’CET- ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, do Centro de Investigação em Artes e Comunicação da Universidade do Algarve e do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património, assim como da Secção Regional do Algarve da Ordem dos Arquitetos.