Naquela que é considerada a província mais descristianizada da Europa, o Alentejo, as populações rurais preservam uma maneira muito peculiar de celebrar o Natal: cantando. Mas, ao contrário do cante de todos os dias, que invoca o trabalho ou a saudade, as «modas» que se entoam na noite de consoada são de uma religiosidade extrema. É o cante ao Menino.
Ao contrário do cante às Janeiras e aos Reis, que era praticado porta a porta, em especial junto às casas mais abastadas, onde era reclamada alguma compensação pela atuação, o «cante ao Menino» sempre foi visita das igrejas, tal o teor da religiosidade destas composições poéticas. Ainda mais arrastado do que os habituais cantares tradicionais do Alentejo, recorrendo a poemas extensos, por vezes romances, de difícil execução, o «cante ao Menino» é, por certo, um dos mais antigos legados da cultura oral do Alentejo.
Em 2014, a Unesco acrescentou o cante alentejano à lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Paulo Lima, responsável pela candidatura apresentada a este organismo das Nações Unidas, reconhece com agrado esta passagem das canções de Natal do Alentejo, que antes eram entoadas de forma espontânea, da rua ou do interior dos lares, para eventos organizados, nomeadamente nas igrejas.
Diz o antropólogo que «existe hoje um trabalho de refolcorização desta temática, o que é muito interessante». Paulo Lima afirma mesmo que este é «o grande momento do cante. Nenhum outro tem o efeito, a repercussão e uma ligação tão profunda à comunidade como este período».
Em quase todos os concelhos do distrito de Beja estão agendadas cerimónias de celebração do «cante ao Menino». Um fenómeno impensável em meados do século passado, quando esta tradição coral esteve à beira da extinção. José Francisco Colaço, estudioso das tradições locais, refere que os próprios grupos corais alentejanos nunca se interessaram muito por este repertório de cariz mais religioso. Antigamente, refere, «havia até alguma recusa em participar neste tipo de cantares. Só muito recentemente é que os grupos corais, pouco a pouco, começaram a entrar nesta lógica».
Perde-se nos confins da memória a origem do cante alentejano. Há historiadores que afirmam que terá tido origem nos tempos da permanência árabe no sudoeste peninsular. Outros acreditam que será uma corruptela pagã das canções litúrgicas próprias aos mosteiros católicos medievais. Também há quem defenda que o cante provenha de períodos mais remotos e que, ao longo da sua transmissão oral, tenha bebido em «todas as fontes», como assinala uma célebre cantiga popular.
Mas poucos são os «vestígios palpáveis» que atestam o longo percurso que o cante alentejano percorreu até aos dias de hoje. Sabe-se, com alguma certeza, que os grupos corais, tal como os conhecemos, serão herdeiros da tradição orfeónica e que os primeiros a aparecerem organizados terão surgido já no século XX. Sendo que, de entre o vasto cancioneiro popular do sul, os versos mais longínquos serão precisamente aqueles que, por estes dias, homens e mulheres ainda cantam neste período de 12 dias que celebra a Natividade, entre as noites de Natal e a noite de Reis.
Artigo do jornal «Diário do Alentejo» | Beja
Edição partilhada especial de Natal
O «barlavento» aceitou o desafio que Marsílio Aguiar, diretor do «JM – Jornal da Madeira» lançou a um conjunto de títulos publicados de norte a sul de Portugal, Açores inclusive. Um projeto pioneiro e independente de partilha de histórias com objetivo de, em cada jornal regional, celebrar o Natal de todo o país. Participam na iniciativa os jornais «Aurora do Lima»; «Diário do Alentejo»; «Diário do Minho»; «Diário Insular»; «JM – Jornal da Madeira»; «MAIS/Semanário»; «Notícias da Covilhã»; «O Almonda»; «Região de Leiria».