Um Jardim Botânico Mediterrânico para Querença, uma flor rara para Loulé

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Percurso eco-botânico Manuel Gomes Guerreiro, o primeiro do país dedicado em exclusivo à flora mediterrânica, já foi inaugurado. E se tudo correr bem, acolherá a plantação de um narciso extinto, proposto a símbolo do concelho.

É uma vegetação que poderia estar na Argélia, na Jordânia, na Turquia, na Grécia ou em Itália, mas está em Querença no sul de Portugal. São zimbros e loureiros, tomilhos, alecrim, até rosmaninho e estevas perfumam o ar de uma encosta virada a sul, exposta de frente para todas as horas de sol, onde cresce agora um jardim de biodiversidade.

A obra, que ocupa uma área de hectare e meio, projetada pelo decano dos arquitetos paisagistas portugueses, Fernando Santos Pessoa, em coautoria com dois discípulos, João Marum e João Rodrigues, foi inaugurada pelo casal Ramalho e Manuela Eanes, na tarde de sexta-feira, dia 10 de março. 

O percurso é uma homenagem aquele que terá sido um pioneiro da ecologia em Portugal, o académico Gomes Guerreiro. Com vasta obra publicada, foi o primeiro secretário de Estado do Ambiente, com o país já em democracia e liberdade, no I Governo Constitucional, em 1976, altura em que o General Ramalho Eanes foi Presidente da República.

Gomes Guerreiro, nascido em Querença (e que, apesar do apelido, não era parente do etnólogo Manuel Viegas Guerreiro, patrono da Fundação), foi também o primeiro Reitor da Universidade do Algarve (UAlg), que ajudou a fundar.

Após ter ajudado a esposa a plantar uma jovem oliveira, símbolo da paz, ao lado da oliveira milenar, cuja idade é 1.575 anos e entretanto certificada, o ex-chefe de Estado lembrou o amigo. «Esta homenagem e revisitação da vida e obra do professor Gomes Guerreiro, servirá para nos inspirar. Foi um dos homens com quem mais aprendi. Aprendi sobretudo a ser eticamente responsável e a ser cuidadoso com o trabalho que assumia porque lhe correspondia uma responsabilidade acima da lei para com o país».

«Era uma personalidade que pugnava pelo dever da responsabilidade social, para proporcionar condições de desenvolvimento à sua região e ao seu país. Fazia-o com uma certa poesia», recordou no seu discurso. E exortou «a viver com outros seres, a respeitar a defesa da nossa casa comum, da natureza. Atentar contra essa casa, virar costas à harmonia, à beleza, à estabilidade que é vida, parece que só agora os governantes começam a acordar para a realidade. Foi nesta convicção que encontrou força para denunciar a deflorestação industrial», entre outras problemáticas que ainda hoje persistem.

Se dúvidas houvesse, Jorge Paiva, biólogo premiado que deu nome a novas espécies para a ciência e consultor científico do jardim eco-botânico,  lançou um alerta na apresentação a que chamou «Portugal Dendrodescoberto e a perda da biodiversidade e da água». 

«Loulé e o Algarve têm uma biodiversidade e seres vivos que não existem em mais nenhuma parte do mundo. Isto tem de ser preservado, não pode desaparecer», disse, e dirigindo-se ao autarca Vítor Aleixo, mostrou a fotografia de uma flor Narcissus Willkommii, espécie endémica do barrocal algarvio, identificada no século XIX e hoje considerada escassa.

«Este é um narciso que colhi em 1962. Posso desde já dizer que está preservado no jardim botânico de Coimbra. Vamos tentar fazer um projeto de cultivo, com tecnologia moderna, porque só já existem algumas populações ao longo da ribeira de Quarteira. E há cada vez menos. Este é um exemplo, porque há uma outra planta que só existe ao pé do Castelo de Paderne. E temos em reserva uma lavandula que já não existe».

E tal como o sobreiro (Quercus suber), é considerada a árvore nacional desde 2011, « Loulé também pode escolher uma flor do concelho, mas primeiro é preciso cultivá-la para ter suficiente», disse, embora sem revelar o nome científico do narciso, para não colocar em risco os poucos que restam.

Um objetivo corroborado por Fernando Pessoa. «A ideia é preservar as espécies da Olea e Ceratonia que sobe até à Arrábida. Já existem há muito tempo e estão melhor preparadas para resistirem às alterações climáticas. Temos cerca de uma centena, mas são sobretudo as que têm venda comercial. Gostava de ir na primavera pelo mato fora à procura» das mais raras.

Em relação ao narciso, poderá vir a ser plantado, «se conseguirmos um exemplar» e também numa segunda fase do projeto. «Ainda falta falta construir um charco para todas as plantas de borda de água».

Vítor Aleixo, autarca louletano, ouviu bem as mensagens. E respondeu, no uso da palavra. «Esta não é uma obra material. Não tem ferro nem cimento. Não é mais um hotel de cinco estrelas nem mais um grande empreendimento (que também precisamos deles, valha a verdade, talvez com um pouco mais de parcimónia, mas isso é outra conversa)». 

Elogiando a mensagem de Jorge Paiva, o autarca reconheceu que «é tempo de refletir profundamente o tipo de civilização em que estamos envolvidos, para a qual contribuímos muitas vezes de uma forma absolutamente inconsciente. Nada melhor que inaugurar um monumento para chamar a atenção que de facto o homem é capaz de pensar a sua relação com a natureza», disse.

«Homenageamos um ambientalista que viu muito cedo muito longe, um homem à frente do seu tempo», que no Clube de Roma, «o primeiro Think Tank da época contemporânea, chamou a atenção para os limites do crescimento económico. Loulé já cuida, já cultiva estes valores. Já é nossa prática rotineira e cultura interiorizada. Já faz parte de uma nova conceção de gestão autárquica», referiu.

«Não vou esquecer», disse, e lembrou o Algarvensis, aspirante a geoparque da UNESCO, que une os concelhos de Loulé, Silves e Albufeira.

«Temos também um hotspot da biodiversidade com espécies cavernícolas em Vale Telheiro, com espécies únicas na ciência e que só têm paralelo na América Latina. Estamos a falar de um tempo na Terra que aconteceu antes da separação dos continentes. Temos aqui esse conjunto absolutamente raríssimo nas grutas de Vale Telheiro, que tratámos, classificámos, comprámos os terrenos e vamos cuidar», garantiu.

E transmitir esse conhecimento às gerações vindouras, porque para proteger e valorizar é preciso aprender a amar o nosso território, as nossas pessoas, os nossos costumes e tradições. Vamos tratar desse narciso e vamos também instituir um prémio professor Manuel Gomes Guerreiro», conforme sugerido por Ramalho Eanes.

«Na área das ciências do ambiente, de facto, não temos, em meio escolar, algo que possa chamar a atenção para divulgação da cultura científica», afirmou.

«Esta tarde ficará na memória de todos nós pelo simbolismo profundo de que se reveste», concluiu Vítor Aleixo.

Por sua vez, João Guerreiro, professor catedrático da Universidade do Algarve (UAlg) e ex-Reitor da academia, filho do homenageado, presente com a irmã Margarida, agradeceu o carinho.

«Este percurso reflete a riqueza da região e o meu pai, se cá estivesse, ficaria encantado. E sobretudo reflete a disseminação do conhecimento, tal com fez em todas as funções que desempenhou. É um projeto que, seguramente, será acarinhado por todos. É fundamental que seja usado por escolas e acho que terá também impacto no turismo cultural, o que é importante», sublinhou.

«Esta é uma inauguração a que assistimos com enorme alegria. Um momento feliz para todos os que se interessam e que intervêm na valorização deste ambiente da Dieta Mediterrânica, e para a nossa família que vê com satisfação a evocação destas ideias na terra que o viu nascer», disse João Guerreiro.

Na cerimónia, foi ainda apresentado um videoclipe com uma composição original da harpista Helena Madeira (música, poema e voz), intitulado «A Raiz», que teve a participação da bailarina e coreógrafa Inês Mestrinho. Aquele que é o único jardim mediterrânico in situ do Algarve situa-se junto à Fundação Manuel Viegas Guerreiro e pode ser visitado todos os dias.

Muitas das plantas, arbustos e árvores têm, além da identificação, um QR Code que permite obter, no telemóvel ou tablet, informação científica adicional sobre cada uma, através de uma aplicação desenvolvida pela UAlg.

Orçado em mais de 200 mil euros, este o projeto é financiado pelo Programa Operacional Regional CRESC Algarve 2020, no âmbito do FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional. A Câmara Municipal de Loulé é parceira e cofinanciadora.

Pessoas na paisagem por Filipe da Palma

Uma instalação fotográfica de pessoas da comunidade à escala real, trabalho realizado pelo fotógrafo algarvio Filipe da Palma mostra algumas caras conhecidas e outras que se convida a conhecer.

A ideia é mostrar a visão de Manuel Gomes Guerreiro, cientista e académico, e Manuel Viegas Guerreiro, etnólogo e professor, dois humanistas do século XX e filhos da terra. A instalação espelha as relações entre a comunidade e o território, a paisagem, o homem e o ambiente. «QRENÇA na paisagem» tem autoria e conteúdos de Marinela Malveiro, design de Mário Lino e produção da União de Freguesias de Querença.