Thomas Cook: a dispendiosa proteção dos viajantes é assegurada predominantemente pelo Estado alemão

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1) Deficiente avaliação do risco e incorreta interpretação da normação europeia gerou a desproteção de milhares de viajantes

No meu artigo anterior, publicado a 13 de novembro, referi a incorreta transposição da Diretiva 2015/2302, de 25 de novembro de 2015, na Alemanha, mercê da limitação da responsabilidade da seguradora a 110 milhões de euros, pelo que o sistema alemão apresentava muitos problemas, contrastando com o expedito e garantístico ATOL (Air Travel Organisers Licence), implementado no Reino Unido, deixando milhares de viajantes sem proteção.

Segundo informação de 12 de dezembro, o repatriamento de 140 mil viajantes alemães terá custado 59,6 milhões de euros, ou seja 425 euros por viajante. A verba mais substancial respeita aos reembolsos a 525 mil clientes que não viajaram, no valor de 287,4 milhões de euros, ou seja 547,4 euros em média por cada cliente.

2) O governo alemão preocupou-se com o prazo para a transposição mas descurou grosseiramente a norma e jurisprudência europeia relativamente à ilegal limitação da responsabilidade

Depois da China, a Alemanha é o segundo maior mercado emissor de turistas a nível mundial, representando uma quota de 8,0 por cento do total da procura turística mundial, de acordo com o Euromonitor International, o que espelha a importância que a atividade de viajar assume para os seus cidadãos.

De harmonia com o estudo ReiseAnalyse 2018, «em 2017, os gastos médios por viagem e turista ascenderam a 1.045 € nas viagens de férias com mais de cinco dias e 266 € nas viagens de férias curtas (2-4 dias). O turista alemão realizou, em média, 1,29 viagens de cinco ou mais dias e 2,39 viagens de 2 a 4 dias. O gasto médio diário por pessoa situou-se nos 87,4 € e a estadia média no estrangeiro foi de 13,5 dias». (TravelBI, Turismo de Portugal, Caracterização do mercado emissor Alemanha, 2019).

O importante corpo de normas que protege os consumidores de viagens organizadas não está vertido num qualquer diploma legal, mas sim no mais importante de qualquer país, isto é, no seu Código Civil (rgerlichen Gesetzbuches, vulgarmente conhecido por BGB).

Assim sucedeu, nos anos 90, com a transposição da Diretiva 90/314/CEE, de 13 de junho de 1990, relativa às viagens organizadas, férias organizadas, e circuitos organizados, e também relativamente à recente Diretiva 2015/2302/UE sobre viagens organizadas e serviços de viagem conexos.

A Alemanha não só reservou o mais importante diploma legal para este conjunto de normas europeias – uma referência mundial – como dispõe de um conjunto de reputados especialistas no meio académico, profissional, e nos tribunais. Os diferentes manuais universitários de Reiserecht, comentários colectivos à Diretiva,e as constantes decisões proferidas pelos seus tribunais são absolutamente indispensáveis para o estudo destas matérias.

No que respeita ao prazo da implementação, a Alemanha apresentou logo nos primeiros meses de 2016 um draft, assistindo-se a um debate intenso e alargado, no qual participou a própria chanceler Merkel.

Foi dos primeiros Estados-Membros a transpor a Diretiva, respeitando o deadline de 1 de Janeiro de 2018 (art.º 28º/1), tendo certamente presente a condenação que, por esse motivo, a justiça europeia lhe havia infligido vinte anos antes.

Com efeito, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) havia condenado a Alemanha no célebre caso Dillenkofer, entendendo que a não transposição atempada ou incorreta de uma diretiva gera responsabilidade civil do Estado-membro perante os consumidores lesados pela falência de operadores turísticos.

O argumento fundamental das acções de indemnização propostas contra a República Federal da Alemanha foi o seguinte: se o artigo 7° da Diretiva tivesse sido transposto para o direito alemão no prazo estabelecido – ou seja, antes de 31 de dezembro de 1992 -, os consumidores teriam ficado protegidos relativamente às falências dos operadores, ocorridas no verão de 1993.

Deste modo, o prazo de transposição da Diretiva 90/314/CEE era até 31 de dezembro de 1992 (art.º 9º, nº 1). No entanto, a Alemanha só a realizou no segundo semestre de 1994. Por essa razão, o art.º 7º da Diretiva, que estabelecia que «O operador e/ou a agência que sejam partes no contrato devem comprovar possuir meios de garantia suficientes para assegurar, em caso de insolvência ou de falência, o reembolso dos fundos depositados e o repatriamento do consumidor», só foi transposto para o § 651 K do BGB, em 24 de junho de 1994, entrando em vigor em 1 de novembro desse ano.

Aplicando os princípios do caso Francovich, em que o tribunal do Luxemburgo reconheceu, pela primeira vez, a responsabilidade de um Estado-membro pela não transposição de uma diretiva destinada a proteger os trabalhadores nas situações de insolvência do empregador, no caso Dillenkofer aplicou-se mutatis mutandis no campo dos consumidores de viagens organizadas, o instituto da responsabilidade civil do Estado decorrente de inação na transposição de legislação europeia.

3) Como o seguro tem o limite de 110 milhões euros, verificou-se a inesperada assunção dos pagamentos pelo Estado aos viajantes lesados no montante de 237 milhões de euros

Só quando surgiram, nas televisões alemãs, as notícias de turistas impedidos de sair dos hotéis e de acederem aos quartos, a dormir junto à piscina, é que o seguro garantiu aos hotéis uma percentagem do pagamento do alojamento.

Nos primeiros tempos, o governo alemão fugiu às suas responsabilidades dizendo que os repatriamentos e reembolsos eram um problema da seguradora.

No entanto, o governo alemão anunciou, inesperadamente, no passado dia 11 de dezembro, que os viajantes alemães terão direito a receber os reembolsos das viagens que não vão realizar em consequência da falência da Thomas Cook.

Assumindo, em lugar da seguradora, o respectivo pagamento. O sinistro está estimado em 347 milhões de euros, pelo que deduzindo os 110 milhões de euros a cargo do grupo Zurich, os contribuintes alemães vão desembolsar 237 milhões de euros, ou seja mais de 2/3 do prejuízo.

Teve o executivo alemão certamente em mente que os tribunais alemães e o TJUE não o deixariam de condenar, pela incorreta transposição da nova normação europeia das viagens organizadas e serviços de viagens conexos.

Para além do caso Dillenkofer, em que o tribunal do Luxemburgo entendeu que a não transposição atempada ou incorreta de uma diretiva gera responsabilidade civil do Estado-membro perante os consumidores lesados mercê do colapso de operadores turísticos, outras decisões foram certamente ponderadas pelo executivo alemão, designadamente:

1) O caso Rechberger,respeitando a um grupo de consumidores, assinantes de um jornal austríaco, dentre os quais Walter Rechberger, que não usufruíram das viagens, mercê da indisponibilidade de lugares ou da agência co-organizadora ter entretanto falido, sendo que os viajantes tinham realizado os respectivos pagamentos, mas só recuperaram uma pequena quantia no processo de falência.

O colapso decorreu fundamentalmente do número de assinantes que se inscreveu excedido as previsões, tendo a agência de viagens co-organizadora falido.

O TJUE entendeu que «o artigo 7º da Diretiva 90/314/CEE não é corretamente transposto quando uma regulamentação nacional se limita a exigir, para cobertura do risco, um contrato de seguro ou uma garantia bancária de montante igual no mínimo a 5% do volume de negócios realizado pelo operador no âmbito da sua atividade no respectivo trimestre no ano civil anterior e que exija que o operador que inicia a sua atividade se baseie na previsão do volume de negócios correspondente à atividade prevista de operador turístico, não atendendo ao aumento do volume de negócios do operador que ocorra durante o ano em curso».

2) O caso Baradics, em que Ilona Baradics e outros consumidores, vítimas da falência de um operador turístico húngaro, processaram a seguradora visando o reembolso do montante dos adiantamentos ou do preço total pago por cada um deles para a aquisição de uma viagem organizada que não realizaram.

O contrato de seguro celebrado entre a agência de viagens e a seguradora previa um montante máximo de aproximadamente 130 mil euros, sendo que em razão deste limite, os consumidores apenas foram reembolsados em 22 por cento dos adiantamentos ou dos preços pagos, pelo que intentaram uma ação judicial contra a seguradora e o Estado húngaro para recuperarem o remanescente.

O TJUE entendeu que o artigo 7° da Diretiva 90/314 devia ser interpretado «no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional cujas modalidades não têm por resultado garantir efetivamente ao consumidor o reembolso de todos os fundos que depositou e o seu repatriamento em caso de insolvência do operador de viagens».

O TJUE sublinhou ainda «que um EstadoMembro não dispõe de nenhuma margem de apreciação quanto ao âmbito dos riscos que devem ser cobertos pela garantia prestada pelo operador ou pela agência de viagem aos consumidores».

3) O caso Blödel‐Pawlik,em que o tribunal do Luxemburgo explicita que impende sobre os Estados-Membros uma obrigação de resultado:

«A este respeito, o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 74 do seu acórdão de 15 de junho de 1999, Rechberger e o. (C‐140/97, Colet., p. I‐3499), que o artigo 7.° da referida diretiva estabelece a obrigação de resultado de atribuir aos participantes em viagens organizadas o direito às garantias de reembolso dos fundos pagos e de repatriamento em caso de falência do operador turístico e que essa garantia se destina precisamente a proteger o consumidor contra as consequências da falência, sejam quais forem as suas causas» (nº 22).

Em conclusão:

1) O Estado alemão, ao limitar a responsabilidade de harmonia com um critério empírico, o maior sinistro no histórico das falências ocorridas, não atendeu minimamente ao plasmado no art.º 17º da Diretiva, bem como a um conjunto de decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, designadamente os casos Rechberger, Baradics, e Blödel‐Pawlik.

2) O Estado alemão assume o pagamento aos viajantes, atualmente avaliado em 237 milhões de euros, ou seja 2/3 das compensações a viajantes, com o óbvio propósito de escapar a um contencioso que lhe seria desfavorável, dissimulando o erro cometido na transposição do quadro europeu.

3) Naturalmente que as elevadas dívidas da Thomas Cook a hotéis e outros fornecedores não serão pagas pelo Estado alemão, dado que a Diretiva 2015/2302 apenas protege viajantes (consumidores e viajantes profissionais, exceptuando os managed bussiness travel).

4) Esta assunção de responsabilidade do Estado alemão é facilitada pela inexistência de responsabilidade solidária do retalhista no BGB. Se, ao invés, tivesse seguido a opção do legislador português, as consequências da quebra da Thomas Cook seriam suportadas, em primeiro lugar, pelos retalhistas alemães, com o inerente colapso de um elevado número de micro, pequenas, e médias empresas (efeito dominó), agravando o desemprego.

5) Estados-membros como a Alemanha e França já anunciaram que vão aumentar significativamente as contribuições para o sistema de proteção na insolvência de molde a enfrentar o exigente quadro europeu.

6) De harmonia com o considerando 40 da Diretiva, a garantia tem de abranger uma percentagem suficientemente alta do volume de negócios do organizador. Apenas se excluem casos extremos, ou seja «não deverá ter de atender a riscos extremamente improváveis como por exemplo a insolvência simultânea de vários dos principais organizadores, caso tal afete desproporcionadamente o custo da proteção, comprometendo assim a sua eficácia».

7) O que significa que o sistema de proteção, para ser efetivo à luz do artigo 17º, deverá ter em conta o risco gerado por alguns dos grandes operadores em época alta, não pode é considerar que vão falir simultaneamente (worst case scenario).

8) Esperemos que esta lição do elevado preço pago pelos contribuintes alemães seja devidamente estudada em Portugal, que irresponsavelmente não protege os seus consumidores e sacrifica empresas de pequena dimensão (retalhistas), para que grandes organizadores fujam ao pagamento de uma garantia que abranja uma percentagem suficientemente alta do seu volume de negócios.

9) Ao dispor de um fundo de garantia manifestamente insuficiente para atender à quebra de um só operador de média ou grande dimensão em época alta, os contribuintes portugueses, à semelhança do que agora aconteceu com os alemães, podem vir a ser chamados a pagar uma pesada factura.

10) O risco de Portugal, comparativamente à Alemanha, é bem maior pela simples circunstância de o nosso irresponsável sistema low cost poder atrair operadores tóxicos, maxime doutro Estado-Membro (caso Low Cost Travel), que podem aqui desenvolver a sua atividade com um inexpressivo pagamento de 2500 euros, mas gerando, aquando do seu colapso, um prejuízo de muitos milhões de euros para os contribuintes portugueses e enviar para a falência um elevado número de PMEs nacionais.