Quarta edição do Tanto Mar, organizado pela Folha de Medronho traz artistas de Cabo Verde, Moçambique, Brasil e Portugal a Loulé.
Um projetor de luz ténue ilumina metade da face de João de Mello Alvim, um dos fundadores da Folha de Medronho, associação que desde 2017 desenvolve atividades na formação, produção, criação e até publicação editorial no âmbito das artes performativas, em Loulé. Na pequena sede, mesmo em frente à Igreja de São Francisco, imagina-se um teleférico cultural entre a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
«Na verdade, já existia uma boa relação com África e Brasil», dos tempos em que Alvim dirigiu o festival Periferias, em Sintra, uma mostra para dramaturgias lusófonas menos conhecidas, recorda. Na altura, estava envolvido com o Chão de Oliva – Centro de Difusão Cultural, até, por motivos pessoais e familiares, se mudar para o Algarve. A ideia era dedicar-se à pintura, com a esposa, Alexandra Macedo, e acabaram por fundar a Folha de Medronho.
«Comecei a ter uma certa rede que permite ir alimentando este evento. A língua é para nós muito importante, porque há muitas questões que, quer queiramos, quer não, temos de resolver. Coisas boas e coisas más que se passaram entre os povos. Queremos abordar isso. Este não é um festival à la carte. Há orientações de navegação, como nós chamamos, e os grupos que vêm cá, nós conhecemos o seu trabalho», explica.
Este ano, a anteceder os espetáculos, haverá uma sessão de abertura, na terça-feira, dia 23 de maio, às 18h00, no Café Calcinha. Será sobre «o estado das artes performativas nos países falantes do português. Fazemos questão em dar espaço às pessoas para conviverem umas com as outras, para que apresentem os seus grupos e falem das suas realidades. Uma novidade é que conseguimos que a Marta Lança, investigadora sobre questões africanas e brasileiras, viesse cá fazer uma moderação aberta» ao diálogo, disponível ao público.
Após este momento, o cartaz arranca no dia 24, no Cineteatro Louletano, onde terão lugar todos os espetáculos. Abre com «Quarto Império», de Cátia Terrinca e Herlandson Duarte, representado por UmColetivo, grupo de Elvas, no distrito de Portalegre.
«Tem a ver com a relação que há entre Portugal e Cabo Verde, descreve o diretor artístico, baseado no livro «Caderno de Memórias Coloniais», de Isabela Figueiredo, «uma obra literária e um documento que compilou factos, acontecimentos efetivamente ocorridos e presenciados pela então pequena Isabela, regressada de Moçambique na urgência da ponte aérea».
Segue-se, a 25 de maio, «Os dias de Birgitt», de Mário Lúcio Sousa, pela Sikinada – Companhia de Teatro, da Cidade da Praia, em Cabo Verde, que retrata «uma abordagem contemporânea, no limite entre a sobriedade e o humor» do aparecimento de uma doença terminal. Uma peça de teatro mais convencional, segundo João de Mello Alvim.
Por sua vez, a obra «Recados de lá_Revisitação» de Santana Dias Santana, será apresentada pela Lareira Artes e Comunicação, de Maputo, capital de Moçambique, a 26 maio, com dois homens «desconhecidos e traumatizados» a encontrarem-se «desesperados» num abrigo como fugitivos de guerra. «É um espetáculo muito forte. Tem a ver com as guerras civis, com as migrações, mas sem ser explícito. Refere-se a toda a instabilidade do continente africano de uma forma muito simples, mas potente», acrescenta.
Sem querer apontar um ponto alto para o cartaz, Alvim prefere falar em continuidade. A Tribo de atuadores Ói Nóis Aqui Traveis, de Porto Alegre, no Brasil, apresenta «M.E.D.E.I.A», a 27 de maio, retomando «uma versão antiga e pouco conhecida do mito», imortalizado no clássico de Eurípides.
Em setembro, parte deste grupo vai participar na criação anual da Folha de Medronho para 2023. «Desafiámos a Tânia Farias, que é uma grande atriz, para protagonista e também Paulo Flores, um dos fundadores da Tribo, para dar apoio na parte técnica. A Tribo é um grupo icónico do Brasil, no teatro não comercial. A nossa ideia é desenvolver um trabalho original sobre o papel da mulher na história do teatro, isto é, as personagens que atravessam a dramaturgia mundial. O texto vai ser construído», mas, segundo Alvim, já tem título. Chamar-se-á «Sobre Rosas e Margaridas».
Em conversa com o barlavento, João de Mello Alvim revela que, «de facto, está cada vez mais provado que a origem de tudo está em África. Existe essa miscigenação. As conversas, inevitavelmente», abordam o colonialismo. «Nós fomos invasores, fizemos negócios, matámos, houve escravatura, mas houve coisas importantes que ficaram e que também apanhámos. Não temos de andar a penar porque isso se passou. Agora, não vamos dizer que não fizemos. Temos, sim, de seguir e olhar para frente», enfrentando os tabus.
Por outro lado, os países por onde tem feito prospecção, «são pobres, mas têm agentes muito ricos. A cultura está vivíssima. Em Maputo há dezenas de grupos inorgânicos. Falo de uma força tão grande que nos arrasta para trabalhar com eles. Claro, tem de haver disponibilidade, pois não há as condições que temos aqui. Em Angola, há muitos grupos profissionais, embora com dificuldades. Mas há uma enorme vida em todo este universo», conclui.
O festival Tanto Mar é uma coprodução da Folha de Medronho, a Câmara Municipal de Loulé e o Cineteatro Louletano.