Curso de formação e residência criativa capacitaram um grupo de oito artesãos para retomar uma técnica perdida, mas plena de potencial. Além das pessoas, vai nascer um polo nas Sarnadas, o último reduto da arte do esparto.
A QRER – Cooperativa para o Desenvolvimento de Territórios de Baixa Densidade, no âmbito do projeto de cooperação transfronteiriço Magallanes_ICC, tem vindo a fazer uma intervenção na técnica do esparto, «que estava à beira da extinção», começa por explicar João Ministro, cooperador e empresário de turismo de natureza sustentável.
«É uma técnica de cestaria, também conhecida como empreita do esparto e que era muito utilizada para fazer tapetes, cestas e alcofas, porque é um material muito forte. O esparto (Stipa tenacissima) é uma planta que cresce naturalmente no barrocal algarvio. Há 60 ou 70 nos, havia uma grande comunidade de pessoas a trabalhar na zona de Alte, sobretudo nas Sarnadas. E havia mesmo muito comércio. Só que o esparto é uma planta difícil de trabalhar. Requer um processo de preparação que é duro, difícil e moroso. Precisa de ser molhado, de estar vários dias dentro de água e depois disso tem que ser malhado. Com o tempo, foi sendo abandonado, até porque o artesanato desvalorizou muito», descreve.
Isto não significa, contudo, que a técnica não desperte o interesse de uma nova geração de artesãos. A recuperação começou no ano passado, com a realização de um curso de transmissão de saberes mestre/aprendiz que, com sucesso, juntou um grupo de oito pessoas, ao longo de um mês.
«Dois ou três já conheciam, mas para a maior parte dos formandos esta foi mesmo a primeira experiência que tiveram com este material». Este ano, houve uma segunda fase, que decorreu entre 26 de setembro e 7 de outubro, através de uma residência criativa para «dar continuidade à vontade das pessoas em iniciar uma atividade profissional à volta do esparto. Juntou designers [Alexandra Gonçalves e Ana Rita Contente], alguns dos formandos que tinham participado no curso anterior e outras pessoas com vontade de fazer uma parte da sua vida ao nível do artesanato», diz.
No caso da residência, o curador Hugo da Silva, «dentro do período de duração previsto e com os objetivos traçados, estabeleceu também um máximo de oito participantes, para ser viável o trabalho», acrescenta Susana Calado Martins, cooperadora da QRER.
«Apesar de participarem não como aprendizes, embora ainda o sejam por serem principiantes, a residência foi uma experiência profissional porque todos foram contratados para desenvolverem produtos originais», acrescenta.
«Quando lançámos o convite aos jovens artesãos para participarem, um dos critérios de seleção foi terem atividade aberta. Ou seja, quisemos dar-lhes um estímulo. De certa maneira, há aqui uma garantia de que estão capacitados, até do ponto de vista legal, para fazerem este tipo de trabalho», sublinha João Ministro.
Neste sentido, «os participantes tiveram liberdade criativa, porque ainda estão a encontrar os seus próprios caminhos e o que ainda querem desenvolver dentro desta atividade», explica.
Por isso, «as experiências acabaram por ser muito criativas. Temos peças que são sobretudo artísticas, outras que são utilitárias e também um misto entre ambos. Por exemplo, há vários candeeiros, um de grande dimensão, fora do comum. Uma das participantes, Milena Kalte, que está incubada na QRIAR – Incubadora Criativa do Algarve, resolveu, nesta residência, fazer peças segundo uma das linhas que estava a desenvolver: as máscaras de animais. Isto tem a ver com as raízes da atividade tradicional ligada ao esparto. Antigamente faziam-se cabeças burros e galinhas», peças decorativas que hoje em dia já são raras de se encontrar.
No entanto, não são imitações do passado. «Como ela tem formação em antropologia, está a pesquisar animais que se liguem ao território algarvio, quer sejam verdadeiros do ponto de vista biológico, como por exemplo o lince, quer sejam criaturas fantásticas, do imaginário popular». Neste caso, inspirou-se na lenda da Zorra Berradeira, registada por Ataíde de Oliveira. Um monstro com aspeto de cabra, cujos urros de fúria, à noite, dizia-se, anunciavam desgraça e aterrorizavam o povo algarvio.
«Esta componente antropológica acaba por ajudar a enriquecer os produtos e a torná-los mais interessantes. Temos também peças feitas com várias técnicas. O esparto não se trabalha sempre da mesma maneira. Há a componente do trabalhar a cru, de trabalhar o esparto cosido e existem várias técnicas para os nós. Nalguns trabalhos, os participantes aplicaram várias técnicas que aprenderam numa mesma peça», aponta Susana Calado Martins.
Apesar de ser «utilitário e decorativo», na sua opinião, o futuro do esparto passará pela inovação, «porque é um material muito singular. Em termos de execução das peças, a via mais artística, se calhar é a que acaba por se tornar mais competitiva», numa perspetiva de criação contemporânea.
Neste momento, «temos as pessoas que dominam a técnica. Agora é preciso que desenvolvam as suas ideias. Esta residência serviu para isso. Até ao final do ano, os protótipos vão ser melhorados para, em janeiro, haver uma exposição ao público», que está a ser organizada pela autarquia louletana. «Os trabalhos serão apresentados e, esperamos nós, comercializados», prevê João Ministro.
Para já, as peças resultantes da residência «estão em avaliação. Há pormenores técnicos a terminar, ainda é necessário aperfeiçoar, resolver detalhes e perceber os processos. Por exemplo, o tempo de execução de cada peça. Alguns dos participantes não sabem contabilizar. Porquê? Porque foi um momento de criação, de teste, de desmanchar e voltar a fazer, de perceber o que funciona ou não, com a pressão acrescida de ter que estar pronto no último dia. Não foi um ritmo normal de trabalho, portanto. Mas é importante reter que esta é uma arte que leva muito tempo. Todas as peças, mesmo as que parecem mais pequenas, têm muito tempo de execução», acrescenta Susana Calado Martins.
Sarnadas, capital do esparto no passado, presente e futuro
Hoje, a aldeia das Sarnadas é um dos últimos sítios onde ainda sobrevive esta arte praticamente extinta no Algarve. Artesãs como Fernanda Martins, Manuela Limas, Maria José Ramos e Aldegundes Gomes, a mais antiga em atividade, partilharam a sabedoria durante o primeiro curso.
«Não faz sentido, nem é possível trabalhar para o desenvolvimento do interior e dos territórios de baixa densidade, se não for em conjunto com a comunidade local. Estas senhoras acompanharam tudo desde o início, desde o primeiro dia. E durante o ano de intervalo que passou, entre o curso e a residência, os formandos foram mantendo contacto com quase todas elas para tirar dúvidas e reforçar pequenos ensinamentos. Portanto, estão completamente envolvidas neste processo. E estão extremamente orgulhosas, segundo nos disseram. Desta vez não participaram diretamente na residência, mas foram acompanhando, iam lá de vez em quando, ver como estava a correr, dando os seus retoques», diz Susana Calado Martins.
De facto, «em quase todo o interior, e sobretudo no concelho de Loulé, havia muito esta atividade do esparto, era uma tradição bastante forte. A freguesia de Alte terá sido o sítio onde criou mais visibilidade e, se calhar, onde sobreviveu até mais tarde. Até mesmo na aldeia de Sarnadas há elementos artísticos nas ruas a evocaram esta tradição, como os azulejos na Rua dos Pisadouros», lembra.
Para João Ministro, «o caminho é promissor. Há aqui de facto um esforço conjunto para que o esparto ganhe uma nova vida. Estamos a trabalhar ao nível do software com as pessoas, a capacitá-las e a dar-lhes apoio para que iniciem a sua atividade profissional. A Câmara Municipal de Loulé, que é parceira neste projeto, está a criar condições físicas e a equipar um espaço. A antiga Escola Primária das Sarnadas sofreu obras, foi arranjada e será um espaço museológico. Estamos a trabalhar com esforços concertados para que lá venha a nascer um espaço dinamizado à volta do esparto».
Ouvida pelo barlavento, Dália Paulo, diretora municipal da Câmara de Loulé, confirma. «Vamos ter uma oficina do projeto Loulé Criativo, à semelhança das oficinas na cidade de Loulé – empreita, caldeireiros, olaria e tecelagem. É um projeto que estava pensado há algum tempo para dinamizar todo o território e para integrar as artesãs na rede, possibilitando-lhe ter as valências de mentoria e acompanhamento da nossa rede de oficinas».
Em paralelo à realização da residência criativa nas Sarnadas, dedicada ao esparto, e no âmbito do projeto Magallanes_ICC, realizou-se, quase nas mesmas datas, uma outra em Alcoutim, dedicada à cana. O programa, contudo, ficará finalizado num último fim de semana de trabalho a ter lugar em meados de novembro.
QRIAR, a Incubadora Criativa (do interior) do Algarve
Todas estas atividades promovidas pela QRER – Cooperativa para o Desenvolvimento de Territórios de Baixa Densidade, inserem-se no âmbito da programação da QRIAR – Incubadora Criativa do Algarve, financiada pelo projeto de cooperação transfronteiriço Magallanes_ICC, com o cofinanciamento e parceria do município de Loulé e do município de Alcoutim, bem como o apoio da União de Freguesias de Querença, Tôr e Benafim, da Escola Profissional Cândido Guerreiro e da Junta de Freguesia de Alte.
A QRIAR é a primeira incubadora criativa do interior do Algarve e integra o Centro Magallanes para el Emprendimiento de las Industrias Culturales e Creativas. Entre outros objetivos, apoia a criação de empresas na área das indústrias culturais e criativas, bem como os seus primeiros anos de existência, providenciando aos empreendedores criativos os meios e recursos técnicos necessários para o desenvolvimento das suas ideias de negócio e início da atividade empresarial, tais como formação técnica, mentoria especializada, apoio no acesso ao investimento e a redes empresariais, partilha de conhecimento ou consultoria na área da gestão, marketing e suporte jurídico.
Neste momento, há 10 projetos incubados nas seguintes áreas: Gastronomia e Doçaria Tradicional; Educação para a Sustentabilidade; Construção Tradicional e Construção Sustentável; Artesanato em Madeira; Artesanato em Esparto; Produtos de Design Sustentável; Experiências de Arteterapia e Programas para nómadas digitais.
Cabeças de burro na memória coletiva
Viam-se à espreita no escuro das tabernas ou nas antigas vendas, cabeças de burro feitas em esparto. «Eram peças decorativas, não tinham qualquer outra funcionalidade, mas foram das peças mais populares. Perguntei às pessoas mais antigas que trabalharam o esparto, de onde tinha surgido a ideia. Como é que uma arte muito difícil, de custoso trabalho manual, que essencialmente se usava para peças utilitárias, teve esse caminho?», questiona Susana Calado Martins.
A resposta é que «nas últimas décadas do séc. XX, as peças tradicionais e utilitárias que se faziam antes, caíram em desuso com o aparecimento de outros materiais produzidos em série. Então, os artesãos começaram a fazer essas cabeças decorativas. A raiz disso foi o que viram em revistas de decoração da altura. Copiaram os espanhóis, onde eram muito comuns e andavam muito em voga e foi desse modo que se introduziu cá. Enquanto as peças utilitárias mais antigas são difíceis e temos de explicar que servia para um determinado ofício, estas ainda estão na nossa memória», conclui.
De referir que o curso realizado no ano passado contou com a participação do artesão espanhol Pedro Blanco, cujos conhecimentos acrescentaram valor e diversidade à formação. Diz João Ministro: «pertence à quarta geração de uma família de esparteiros. Veio de uma aldeia perto do município de Jaén, onde têm um espaço muito interessante e fazem peças incríveis, inclusivamente para a alta moda».
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Residência Criativa em Artes Tradicionais: Esparto
26 de setembro a 7 de outubro de 2022
Design, Organização e Curadoria: Hugo da Silva.
Designers Participantes: Alexandra Gonçalves; Ana Rita Contente (Sugo Design).
Participantes: Ana Romeira; Bruno Constâncio; Isidoro Ramos; Maria João Cordeiro; Milena Kalte; Neuza Barbosa; Tomásia Loulé; Vanessa Florido.
Curso de Transmissão de Saberes Mestre Aprendiz
28 de setembro a 29 de outubro de 2021
Organização: Hugo da Silva.
Formadores:
Artesãs Locais – Sarnadas: Aldegundes Gomes; Fernanda Martins; Manuela Limas; Maria José Ramos.
Artesão de Paderne: Isidoro Ramos.
Artesão Espanhol: Pedro Blanco.
Participantes: Ana Leão; Ana Romeira; Bruno Constâncio; Fernanda Viegas; Maria João Cordeiro; Milena Kalte; Neuza Barbosa; Tomásia Loulé.
Fotos: Jorge Graça