Casais ganha vida em espetáculo comunitário pelo Lavrar o Mar

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Casais, aldeia a meio caminho entre Monchique e Aljezur é o objeto da nova criação coletiva do Lavrar o Mar, dirigida pela coreógrafa Madalena Victorino. Estreia sexta-feira, 12 de maio.

As memórias, ainda vivas, de um país rural e profundo misturam-se com a nova realidade de hoje, em que os estrangeiros, aos poucos, começam a ocupar os vazios do interior despovoado. Casais, pequena aldeia entre Monchique e Aljezur, é um exemplo. E ao mesmo tempo, é também um terreno fértil para um grupo de artistas, liderados por Madalena Victorino, trabalharem um espetáculo de dança, música e palavra, num percurso que soma seis semanas de criação.

«Casais é uma aldeia pequena, com 90 habitantes, mais ou menos. Era totalmente agrícola e muito pobre. Hoje tem um conjunto de pessoas estrangeiras, sobretudo alemães, mas também franceses. Os locais são na maioria idosos e o nosso grande contacto tem sido, de facto, com estes anciãos, que estão na última parte das suas vidas, e que têm memórias e um saber incríveis», começa por explicar.

«Falo da Aurora, a caiadora. Trabalhou até não conseguir mais aguentar a força nas pernas para estar no escadote e para levantar os braços. Caiou a aldeia inteira e todas as casas das redondezas, vezes sem conta. E conta-nos o preceito dessa caiação. Falo da Helena que foi pastora, desde muito pequenina. A mãe dava-lhe um cordão para ela fazer enquanto tomava conta das ovelhas e das cabras. Não servia para nada, servia apenas para não perder as brincadeiras da infância. São ambas analfabetas, mas sabem imenso. São eruditas», elogia. «Dizem, por exemplo, se o cuco não voltar, o mundo vai acabar. Ele costuma chegar em março. E que a única coisa que temos nossa é a rua», exemplifica. 

Foto: © João Mariano | 1000olhos.pt

Marcado nos corações está ainda «a ideia de que as filhas não eram bem-vindas. Todos os homens apenas queriam filhos. Elas eram sempre preteridas. Nunca conseguiam chegar a ter a força e também, de alguma forma, o amor do pai. O pai ficava insatisfeito quando a mãe dava à luz uma filha. Era capaz até de sair de casa e só voltar dias depois. E nunca estava contente com a performance das filhas no campo. Ouvimos muitas histórias daquilo que é verdadeiramente a natureza humana e a cultura de um tempo que são os anos 1930/50, que são os tempos da infância destas mulheres. Outras iam servir para Lisboa. Não ganhavam nada, só lhes davam comida e guarida. Serviam para vestir os meninos das patroas. São vidas muito, muito duras, mas também muito belas, porque estas mulheres são fortíssimas e sábias», sublinha.

«Os homens também são interessantes. Falam do trabalho, da lenha, da serra, da agricultura, da força que é preciso ter» para quebrar a dureza áspera da montanha. «Mesmo assim, nesta idade avançada, em que as forças já lhes fraquejam, eles não cedem. Não cedem, continuam». 

Por isso, «tem sido uma grande experiência estar com estas pessoas, que são fortes e generosas. Vêem-nos a produzir música, dança, palavras, a partir das suas histórias. Apesar de serem coisas que possivelmente até nem podem compreender na totalidade, algo que também nós não compreendemos, porque a arte nem sempre tem esse lado da compreensão total, gostam muito e dizem-no! E sabem também que trabalhamos muito, há um respeito mútuo que é muito bonito».

Este trabalho insere-se num ciclo que se chama «Povoado». A ideia é criar projetos multidisciplinares de artes performativas, capazes de usar pontos de contacto entre a população de um local isolado e um núcleo artístico que vem de fora e que se instala por algum tempo, para construir uma experiência em conjunto. Uma fórmula que já deu frutos. 

Primeiro no Cercal, com o espetáculo «Nós de vós», que teve encenação de Ricardo Machado e Pedro Salvador, e depois, na aldeia de Abela, próximo de Santiago do Cacém, pela própria Madalena Victorino e Rémi Gallet.

Em Casais, Victorino tem trabalhado com Alice Duarte, «que é uma jovem bailarina e coreógrafa de Monchique que já está no ativo e a desenvolver o seu trabalho», com os músicos Pedro Salvador, que há muito acompanha o trabalho da coreógrafa e Alexandre Moniz, também ele a representar uma nova geração.

O elenco, além dos criadores acima citados, conta ainda com Carolina Sendim, Maria Abrantes, Mathilde Major, Sofia Kafol, Pedro Matias e os habitantes.

Foto: © João Mariano | 1000olhos.pt

Paralelos com a realidade

Sobre o que o público poderá ver, este é um motivo «para se visitar Casais a partir de uma atmosfera ficcionada. Acaba por ser uma aldeia que está presente fisicamente, mas que vamos tendo uma relação com ela do foro imaginário. Vemos as discussões que se criam à porta do café sob o efeito do medronho a aquilo que são as histórias que se tecem para dentro de uma humanidade que é também coreográfica».

«Fizemos um grande atelier de construção de raminhos de flores para decorar a festa do espetáculo onde estavam imensas pessoas mais velhas a cantar, muito bem-dispostas. Há uma revitalização da escola primária que só estava a ser utilizada para a organização das festas anuais da aldeia. E agora, ao longo destas seis semanas, houve uma ocupação muito intensiva, sempre com música e a porta aberta. Quem aqui vive tem uma horta e, portanto, a relação entre casa e campo está sempre a fazer-se.  O espetáculo também tem a dinâmica que encontramos na vida das pessoas. Há um café, há a capela erigida pelas mãos dos habitantes e há escola. É neste triângulo que a vida acontece, e que de alguma forma se completa e se dinamiza, havendo também grupos e fações políticas diferentes, posturas de vida diferentes. Claro que há tensões, mas há também um sentido de aldeia que é muito bonito de ver», descreve Madalena Victorino.  

Giacomo Scalisi, que divide a direção artística do Lavrar o Mar com Madalena Victorino, corrobora. 

Madalena Victorino e Giacomo Scalisi.

«Olhamos para esta nova realidade que acontece nas pequenas aldeias um pouco por todo o Portugal e em particular na parte sul da Costa Vicentina, num Algarve menos conhecido e menos turístico. O que está a acontecer é que estas aldeias que já têm poucos habitantes, oferecem hospitalidade a muitos estrangeiros. No fundo, o tecido social é uma grande mistura entre as pessoas que ali vivem, a maioria idosos, com os estrangeiros que vêm sobretudo da França, Alemanha e Holanda. Compram as casas onde ninguém vive, e aí constrói-se um modelo de sociedade que é muito particular. Penso que este espetáculo é mesmo uma radiografia daquilo que se vive hoje em muitas destas aldeias, onde há um equilíbrio, que não é evidente, entre culturas diferentes num pequeno território. Uma aldeia que noutros tempos teve uma vida muito grande e que agora está a adquirir uma identidade com estes estrangeiros. Não sei qual será o resultado, mas é muito interessante de ver e de analisar».

E isso pode fazer-se desde logo na banda. «Temos o senhor José Maria Inácio que toca pinhas a Isabel Maria, que é uma senhora de 80 anos, que trouxe as maracas de casa. Temos a Dorila, que canta e há também meninas luso-francesas que tocam clarinete e uma delas é a anfitriã. Há toda uma participação coletiva. Esta festa não se assemelha às grandes festas antigas, sobre as quais as pessoas ainda falam imenso, mas é uma lembrança» e quiçá, também, uma forma de as trazer para o presente, com a matéria dos dias de hoje.

«Casais» acontece de 12 a 14 de maio, às 21 horas. É para maiores de 12 anos e tem duração de 2h30. A entrada é livre.