Almargem alerta tutela para situação de pequenos produtores agrícolas

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Almargem, movimentos e associações do Algarve reclamam medidas para mitigar problemas que afetam os pequenos e médios produtores agrícolas, numa nova Carta Aberta de Apoio à Produção Local.

A Almargem, Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve, enviou uma carta aberta à ministra da Agricultura Maria do Céu Albuquerque, Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, Grupos Parlamentares, Direção Geral de Agricultura e Pescas do Algarve (DRAPALG), AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve, municípios e freguesias da região, a 20 de abril, chamando a atenção para os impactes da COVID-19 na atividade dos pequenos e médios produtores agrícolas da região.

Na resposta da tutela, a 6 de maio, «não podemos deixar de fazer notar que a resposta obtida não aborda as questões centrais que motivaram a nossa Carta Aberta. Nas três iniciativas tomadas pelo Ministério da Agricultura, não obstam a que o estado da agricultura e dos médios e pequenos agricultores seja aquela que referimos na nossa Carta Aberta, o que causa enorme apreensão porque demonstra haver dois pesos e duas medidas diferentes por parte quer da tutela, quer do governo, no tratamento que dão quando se trata de um grande, ou quando se trata de um médio e/ou pequeno produtor», lamenta a Almargem.

Por isso, «reiterámos as nossas afirmações e preocupações, bem como as nossas sugestões com as medidas necessárias a tomar, que deverão ser algumas das soluções possíveis para alterar a situação inaceitável que se vive na agricultura em Portugal», com uma nova carta aberta, enviada a 22 de julho, que o barlavento publica na integra.

Carta Aberta Apoio à Produção Local

A Associação Almargem enviou no dia 18 de abril de 2020 uma carta à Ministra da Agricultura. Após alguma reflexão reforça a posição tomada, reúne mais alguns contributos e reivindicações que juntamente com mais entidades, agricultores e sociedade civil se juntam.

Este é um momento difícil, com consequências económicas e sociais que se arrastarão no tempo, muito para além da pandemia COVID-19, como hoje é sobejamente evidente.

Nestes momentos importa analisar processos e medidas, refletir sobre percursos, ponderar a partir do melhor conhecimento disponível no momento, sobre as decisões adequadas que importa tomar.

Vivemos a globalização com aspetos positivos e negativos, sabíamos da nossa crescente interdependência, uns mais dependentes que outros.

Na economia tem-nos sido apontado o caminho das exportações e tem sido pouco cuidada a resposta às necessidades internas.

Esquecemos o que é evidente. Para exportar é preciso competir nos mercados distantes para conseguir vender, fazer o transporte com os custos económicos e ambientais que isso acarreta. Abandonando determinadas produções, porque podemos comprar lá fora mais barato, vamos perdendo competências, atrasando-nos no saber e na tecnologia.

Tornamo-nos duplamente dependentes, no vender e no comprar!

O momento presente mostra-nos isso tudo e face a evidências temos que não continuar a errar nas decisões.

As medidas tem que ser programadas e implementadas de acordo as realidades concretas sob pena de apenas serem acessíveis a alguns, os que detêm capacidade financeira e técnica, não sendo isso sinónimo de práticas mais sustentáveis e relações sociais e de trabalho mais justas.

O sector agrícola no seu todo foi fortemente prejudicado com a pandemia do COVID-19  e  a  campanha «Alimente quem Alimenta», que apenas apela à consciência dos consumidores para consumir produtos nacionais implica, para ter consequências, medidas concretas e ajustadas que valorizem a produção sustentável de produtos alimentares, capazes de satisfazer as necessidades locais e nacionais de consumo.

Os mercados locais de produtores vão reabrindo, embora nunca devessem ter fechado, dada a sua função de abastecimento de bens alimentares. Apenas se teriam que ter criado as condições para que funcionassem com medidas de prevenção capazes de evitar o contágio.

Optou-se por beneficiar as grandes superfícies e a importação de alimentos. Também essa opção, mostra hoje as suas fragilidades, ao se verificarem os problemas de transmissão do vírus nos grandes centros de concentração da logística, a que estão também associadas práticas sociais e de condições de trabalho que é preciso erradicar, assentes na precariedade e nas consequentes condições de habitabilidade e de vida pouco dignas.

São muitas e diferentes as situações que afetaram e ainda afetam os produtores agrícolas:

  • Aos operadores dos pequenos frutos e provavelmente outros frutos destinados maioritariamente à exportação foram fechados os canais de distribuição pela quebra do sector hoteleiro e pela quebra das exportações, já que ocorreu o fecho generalizado dos mercados de destino;
  • À produção de pequena escala e local foram fechados mercados locais, de rua, canceladas encomendas nas grandes superfícies e na restauração. Sendo transversal à produção de hortofrutícolas, à produção pecuária e igualmente para as pescas. De lembrar que este sector sofre bloqueios e estrangulamentos na distribuição mesmo fora deste cenário COVID-19.

Os primeiros, vocacionados para a exportação, tem capacidade de captar e beneficiar de apoios à instalação e agora à quebra de produção; os segundos que abastecem os circuitos de proximidade, com dificuldades e obstáculos quando tentam entrar nos canais de distribuição, ou beneficiar de apoios para melhorar a sua atividade, sobrevive contando essencialmente com o seu esforço e resiliência.

São dois modelos de produção distintos, um muito organizado, mais consumidor de recursos (em especial a água – que no Algarve não pode ser desperdiçada), virado quase exclusivamente para a exportação (consumindo mais combustíveis fósseis e energia). O outro modelo, sem possuir uma estrutura organizada para a distribuição (dada a pequena escala e a diversidade de produtos), é mais adaptado às necessidades alimentares essenciais, localizado, gerindo de forma mais sustentável os recursos.

Ao nível social estes modelos têm impactos bem diferentes no que diz respeito à distribuição de riqueza e na inserção social da sua mão-de-obra.

Esperamos que este momento possa ser útil para a reflexão de como o sector primário se está a desenvolver em Portugal:

  • A primazia dada à agricultura de exportação é contraproducente e contraditória com o atual pacto ecológico que a União Europeia se comprometeu com os seus estados membros, numa aposta à produção local e a modos de produção mais sustentáveis, em muitos casos ser pouco compatível com a componente social, que  deve ser tida em conta para que os direitos humanos não sejam comprometidos;
  • O sistema alimentar globalizado tem vindo a demonstrar ao longo dos anos, fragilidades no cumprimento do objetivo de garantir o direito à alimentação em segurança, pela distribuição e consumo de alimentos desigual, incapaz de responder às necessidades humanas em todo o planeta, que conduzem à morte, subnutrição e desequilíbrios alimentares, de um percentagem elevadíssima da população mundial;
  • A todos os níveis (alimentar, industrial, tecnológico) cada comunidade, cada país, dentro do possível, deve priorizar assegurar autonomia nas suas produções, numa gestão adequada dos seus recursos naturais e outros, e não ficar desprovido em situações de crise, como esta. A produção disseminada no território é a que melhor responde a essa preocupação.

Por todas estas razões, na sequência da carta enviada à Ministra da Agricultura, da resposta que nos foi remetida reafirmando as políticas em curso, remetemos um conjunto de medidas que esperamos, possam acolher a vossa compreensão e ser consideradas em iniciativas legislativas e programas de ação, de modo a responder ao desígnio de afirmação da produção nacional, visando:

  • satisfação das necessidades de abastecimento do país;
  • consolidação dos circuitos curtos dinamizadores da economia local;
  • promoção da qualidade alimentar e dietas saudáveis;
  • manutenção da diversidade, produtividade e fixação de população no território rural;
  • prevenção da saúde pública.

1 – Reabertura de mercados de produtores que ainda se mantenham encerrados e criação de novos mercados em localidades onde não existam e se justifiquem, com condições condignas e com maior apoio e enquadramento dos municípios e freguesias, criando para o efeito medidas de prevenção adequadas, que permitam o escoamento da produção e o fornecimento de produtos frescos e de qualidade a implementar pelas autarquias locais, organizações de produtores, associações de desenvolvimento e outras entidades locais, sendo aconselhável a partilha de boas práticas entre as entidades organizadoras;

2 – Incentivo à produção local, através do escoamento de proximidade garantido através do abastecimento a cantinas e refeitórios públicos e ou de entidades com apoio público (hortícolas e frutos). Só a garantia de escoamento pode incentivar a produção de quem está instalado e motivar novos produtores a implementar pelas autarquias locais;

3 – A concretização do ponto anterior, só terá expressão se se alterar a legislação tendo em vista a aquisição de bens e serviços à produção local, de produtos do setor primário e dos transformados a partir da produção primária local, com critérios de contratação que privilegiem o modos de produção amigos do ambiente, a proximidade e frescura, entre outros, e que defina  valores mais elevados como limites para procedimentos de contratação simplificados. O quadro legislativo atual de contratação pública, favorece fortemente os grandes agentes económicos que intermedeiam, esmagando quem produz e contribuído para destruir a economia local, alterações legislativas da responsabilidade do governo e Assembleia da República;

4 – Apoio na absorção da produção nacional pela grande distribuição com medidas que regulem a proteção para produtores e consumidores nas condições de contratação e na  transparência dos preços, com a obrigatoriedade de afixação do preço de aquisição na produção através da criação de legislação e fiscalização, governo e Assembleia da República;

5- Ajustar a legislação existente para a comercialização de cabazes de produtos frescos e transformados – existe legislação que limita o peso e a mistura de produtos – alteração legislativa/regulamentação pelo governo e Assembleia da República;

6- Operacionalizar o estatuto da Agricultura Familiar de forma a que sejam concedidos apoios directos a quem detém este estatuto, quer pela via dos subsídios agrícolas (Pedido Único) quer pela via de outras medidas de apoio complementares. Considerar abranger neste estatuto agricultores que estejam enquadrados até ao 3º escalão de IRS, por alteração de regulamentação de governo;

7- Reforçar a verba destinada ao Regime da Pequena Agricultura e Modo de Produção Biológico. Bem como ter esta medida aberta durante o tempo de vigência do próxima PAC, e não apenas no primeiro e/ou segundo ano, pela alteração de regulamentação (governo);

8- Retomar a política de apoios concedidos à Agricultura (PU) para que estejam ligados à produção/comercialização, no sentido de apoiar quem produz de acordo com parâmetros sustentáveis;

9- Reforçar as medidas de apoio aos agricultores que prestam serviços ambientais quer pela via da absorção de carbono, quer pela do papel ecológico em zonas vulneráveis, ou por se localizarem em áreas condicionadas/classificadas de interesse ambiental, através de legislação e regulamentação (governo);

10- Adotar e melhorar as medidas de simplificação em curso no âmbito do COVID 19 para  pagamentos aos promotores  de investimentos sobretudo as dos jovens agricultores, à medida 10 – LEADER como os pequenos investimentos,  a diversificação agrícola e comercialização e transformação entre outras. Estes apoios, para investimentos até 100 mil euros, deverão ser validados e fiscalizados através da verificação da execução material, tendo por base custos padrão e não exigências burocrático-administrativas, com custos acrescidos essencialmente para os pequenos investimentos. Nesta formato deverá ser possível contabilizar a mão-de-obra familiar disponibilizada com um limite percentual do investimento. Por exemplo, 25 por cento.

11- Reforçar e criar equipas de agentes locais de apoio técnico direto à produção local, na sua organização promoção e valorização, na sensibilização e educação para o consumo local – a executar por autarquias locais, organizações de produtores e associações de desenvolvimento com medidas de incentivo financeiro da administração central pelas autarquias, governo e Assembleia da República;

12- Definição pelas autarquias de critérios de sustentabilidade económica, social e ambiental, para efeitos de apreciação e decisão sobre instalação de grandes superfícies comerciais, nomeadamente as destinadas ao comércio de géneros alimentares, de modo a salvaguardar a produção e economia local e o harmonioso equilíbrio e qualidade de vida de cada comunidade. Criar legislação que enquadre esta condicionante, pelo governo, Assembleia da República e municípios.

Só com medidas desta natureza, o sector primário, em especial a pequena agricultura com vista ao mercado local e nacional, sentirá confiança para continuar a trabalhar e a contribuir para alimentar o país.

Subscrevem:

Associação Almargem;

Associação das Terras e das Gentes da Dieta Mediterrânica;

Movimento Slow Food do Algarve;

Movimento Glocal Faro;

Os agricultores: Ângela Rosa, Carlos Cabrita, Humberto Costa, Isabel Sousa, Júlia Coelho, Paula Dias, Paula Pedro, Paulo Belchior, Paulo Dias, Rosa Dias, Rui Vieira, Susana Belchior, Paulo Belchior, Paula Pedro, Maria Clara Pires e Sérgio Graça

Atentamente,

22 de julho de 2020